Mulheres lutam por mais direitos na pesca
A atuação das trabalhadoras do mar no litoral catarinense amplia o debate sobre a igualdade de gênero
Texto e Fotos: Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura
A neblina a todo o momento descansa e a planície da Baía da Babitonga, em São Francisco do Sul, vaporiza lentamente enquanto Tina, protegida sob o rancho de madeira da Praia do Mota, relembra do início na pesca. “Me apaixonei pelo mar quando era muito jovem, ainda criança. Com 15 anos já tarrafeava em toda a Baía de Guaratuba. Eu era conhecidíssima, a menina dos Botos. Eu vivia nadando com os Botos. E assim foi minha vida até uma certa idade, pescando e amando o mar”.
Em Santa Catarina, a mulher depende do mar e vive dele: cria-se na areia, cheira a peixe e entranha-se de salitre. Cristine Lançoni, a Tina, de 51 anos, representa a classe de pescadoras que vem ampliando o debate sobre a discriminação de gênero na atividade pesqueira e cobra do governo ampliação das políticas específicas para a mulher da pesca. Atualmente, segundo a Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (Fepesc) existem 41.000 pescadores cadastrados nas 38 Colônias de Pescadores do estado — órgão de classe para trabalhadores do setor artesanal da pesca reconhecido pela Lei 11.699/2008. Do total, cerca de 20% são mulheres, sendo apenas 5% embarcadas, ou seja, que realizam a atividade em alto mar.
Nesta época de frio reaparecem os homens encasacados em conjunto no areal, esperando e vigiando o mar da Praia do Capri, em São Francisco do Sul. No horizonte o contraste é nítido entre as bateras — pequenas embarcações com até sete metros — de pescadores artesanais e as embarcações de carga, atracadas em frente ao porto. Quando pressentem o cardume, os pescadores dão sinal a outros postados para que acudam os cercos e puxem o peixe fresco para a orla. Mãezinha, acompanhada das quatro irmãs, é uma que ajuda na puxada, orienta, brinca e desenrola as tainhas da rede. Com 14 anos, Maria da Graça Araújo Castilho entrou no ramo pesqueiro auxiliando a família na limpeza do Baiacú — cerca de 200 a 300 kg por dia. “Pescador é aquele que levanta cedo para levar seu sustento para casa. Mas homem que chega em casa e ainda pede para mulher limpar o peixe para ele comer, isso não é pescador. Tem muitos homens que respeitam e muitos que não respeitam a força de vontade da mulher de pescar”.
Para Rose Gerber, Antropóloga e representante da equipe da Gerência de Extensão Rural e Pesqueira (GERP) da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI), as mulheres pescadoras, em geral, tem muito claro que a vida é passageira, o que torna a fluidez no ato de se locomover uma característica inerente à atividade pesqueira. Rose realizou, em 2009, a pesquisa Mulheres e o Mar: Pescadoras embarcadas no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil, no doutorado em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), retratando o cotidiano de 22 pescadoras catarinenses que exercem o ofício em alto mar. O trabalho teve o objetivo de redefinir os conceitos da atividade, marcado pela invisibilidade dessas trabalhadoras em relação às políticas sociais.
Zenaide, pescadora, tem dificuldades em lidar com o machismo em sua profissão
“O machismo continua até hoje. No meio de 200 homens, eu sou a única pescadora a puxar rede de tainha”
“Para mim, arrumar um lugar na pesca foi uma conquista grande porque, no Brasil, o machismo continua até hoje. No meio de 200 homens, eu sou a única pescadora de puxar rede de tainha”, conta Dona Zenaide em meio a uma revoada de gaivotas e urubus que devoravam pedaços de peixes. Em todo o vasto areal que se estende na Praia do Pântano do Sul, em Florianópolis, a pesca é de arrasto, que exige uma grande rede, braços experientes e prazer de estar à beira-mar. “Eu fui a mais metida de todas e recebi críticas de mulher macho porque gostava de ver a pesca. Essas coisas de machismo vai mudando e podando o homem. As mulheres também são homens. É uma cultura que não se tira de uma hora pra outra”.
Por todo o litoral catarinense, quem vive da pesca mora em barracos com aspecto rústico, de madeiras por pintar e telhas de zinco. Na Praia do Canto dos Ganchos, Dona Naca divide espaço do seu rancho com barcos, montantes de redes, pedras vistosas e uma porção de gatos que se emaranham pelas redes como peixes em dia de fartura. Em pé no rancho que leva seu nome, a pescadora elabora uma rede de espera, conhecida como “feiticeira”, remendada por três panos e famosa por sua grande eficiência: tudo que entra nela, não sai. Com a fala pausada e rouca, Naca conta sobre a experiência de estar em alto mar, rodeada de homens, e ter que mudar seu comportamento para fazer parte da comunidade. “Lá no mar eu sou homem porque eu não posso me comportar como mulher. No meio deles, os sinais e o vocabulário são iguais, como se fossem de homem para homem”. Por conta do forte predomínio masculino na atividade, Rose Gerber também conviveu com casos de machismo. A antropóloga relembra quando pediu para um dos pescadores descrever o trabalho da mulher. “Ele falou, como um elogio: ela é um homem, é um animal, não falta, não reclama, tem o jeito para a pesca. É nota mil”.
O reconhecimento da identidade como pescadora é um dos impasses que envolvem a participação da mulher no segmento. Rose Gerber considera que o mercado e as instituições ligadas a essas trabalhadoras, como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), partem do princípio que elas não existem. Na pesca, o homem geralmente é o mestre da embarcação e ela a “camarada” — pescadora de apoio que auxilia tanto nos serviços em alto mar como no processo de manipulação e comercialização do pescado. Quando se inicia o defeso, paralisação temporária da atividade pesqueira para preservação de espécies, é concedido aos pescadores considerados profissionais pelo INSS, o Seguro Desemprego do Pescador Artesanal (SDPA) — benefício de um salário mínimo que inclui somente as pessoas que “trabalham em regime de parceria, meação ou arrendamento, em embarcação de pequeno porte” ou aquelas que “sem utilizar embarcação pesqueira, exerce atividade de captura ou de extração de elementos animais ou vegetais na beira de beira do mar, rios e lagoas”, como é o caso do maricultor e do caranguejeiro. Para a antropóloga, no entanto, a pesca é “todo o processo de retirar, limpar, eviscerar, transformar e vender. É a extração de produtos do mar, da lagoa, do rio, até a preparação para a comercialização”.
No INSS, os pescadores artesanais recebem a denominação de Segurados Especiais, categoria daqueles que exercem com exclusividade a atividade pesqueira e a utilizam para a subsistência, de forma independente ou incorporados a um Regime de Economia Familiar — quando membros de uma mesmo família são estruturados de forma colaborativa, sem a participação de empregados. Mesmo não tendo direito ao SDPA, a classe de pescadoras que exercem trabalhos em terra e que atuam no processamento da pesca artesanal pode ter acesso a outros auxílios previdenciários, como o auxílio doença, licença maternidade e aposentadoria, porque, neste caso, são incorporadas ao grupo dos Segurados Especiais. Para receber os benefícios da Previdência Social, porém, estas pescadoras artesanais devem apresentar documentos que comprovem o exercício profissional da atividade, como a Carteira de Pescador Profissional e o documento da embarcação registrado pela Capitania dos Portos.
Jeferson Dosin, Especialista em Normas e Gestão de Benefícios da Superintendência Regional Sul do INSS, explica que é comum as pescadoras de apoio utilizarem os documentos do marido — ou companheiro — para requerer os benefícios, pois boa parte delas não possuem embarcação e não estão inscritas nas Colônias de Pescadores. Para Jeferson o servidor do INSS funciona apenas como um verificador do sistema de registro que a pescadora possui no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). É através do Registro Geral da Pesca (RGP), desenvolvido pelo MAPA e alimentado pelas Colônias, que o INSS avaliará o acesso das pescadoras aos benefícios previdenciários.
A pescadora Mãezinha, ao lado da irmã Zenite, participa da divisão de tainhas na Praia do Capri, em São Francisco do Sul
Com o governo interino de Michel Temer, as atribuições do extinto Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), como a emissão da Carteira de Pescador Profissional, foram encaminhadas para a Secretaria de Aquicultura e Pesca, que pertence ao MAPA. Segundo o presidente da FEPESC, Ivo da Silva, é urgente a melhora do planejamento da pesca marinha por parte do MAPA. Para ele, o maior desafio da instituição é reconstruir o sistema de coleta de dados, além de criar uma política específica que fortaleça as pautas pesqueiras em todo o estado. “Não temos nada no Estado e somos o maior produtor de pescado do país. No ministério da Agricultura, não foi criado um departamento para estatística. Então eles não têm controle nenhum. Por exemplo, na Confederação Nacional dos Pescadores e Aquicultores, nós temos catalogados cerca de 1 milhão e 400 mil pescadores. Se você pegar o cadastramento do Ministério da Agricultura, esse número não vai chegar nem a 800 mil. É uma falta de organização total”. Hoje, Santa Catarina é o maior produtor de pescado do país. Estima-se que 70% do pescado produzido no país é proveniente somente da pesca artesanal, segundo o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).
Fundada em 2005, a Articulação Nacional das Pescadoras do Brasil (ANP) surgiu pela necessidade de reconhecimento das mulheres como atores sociais importantes na produção pesqueira do país. No estado, a atuação da ANP é concentrada nos territórios pesqueiros do Complexo Lagunar do Sul de Santa Catarina, na região de Laguna, composto por oito lagoas. Maria Regina Neura Passarella, aposentada com mais de 35 anos de atividade pesqueira e uma das lideranças da ANP no estado, conta que uma das dificuldades é a incapacidade de se levar a discussão sobre os direitos das mulheres pescadoras em relação aos benefícios previdenciários e às condições de saúde para outras regiões do litoral catarinense.
Tina é uma das lideranças femininas catarinenses lutando por direitos que as pescadoras ainda não têm
Segundo a articuladora, as pescadoras são marginalizadas nas próprias colônias de pesca, tendo dificuldades em ter direito à voz. “Em questão de gênero, perdemos em qualquer atividade, nossas colônias não são governadas por mulheres pescadoras, especialmente aqui no sul. Muitos acreditam que elas nem existem”. Tina acredita que “para a mulher ter voz, às vezes ela tem que ser meio rude. E vou ser bem sincera, você tem que lutar e gritar e bater o pé muitas vezes, senão você chega lá e não vai para frente”. Em São Francisco do Sul, as trabalhadoras da pesca vêm se mobilizando para fomentar direitos, que antes eram exclusivos ao homem. “Estamos pedindo dentista para as crianças e para nós porque o pescador sempre está na nossa frente. Tem curso para pescador, mas não tem para pescadora. Mas ela também tem o direito de fazer o curso de pescador, de elétrica, de motor. Não é verdade? Então temos que nos unir e ir pra frente”.
Uma boa oportunidade para abranger e mobilizar mais mulheres no estado será com as atividades do Projeto de Educação em Saúde do Trabalhador da Pesca Artesanal e Formação de Agentes Multiplicadoras em Participação na Gestão do SUS, no mês de dezembro, em Laguna. As pescadoras receberão informações sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e acerca das doenças laborais a partir de um conceito ampliado de saúde, que insere questões de alimentação, educação, meio ambiente, habitação, entre outros. O objetivo é que as mulheres tenham condições de atuar organizadamente para melhorar as condições de vida, de maneira a evitar acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. O projeto, que surgiu de uma parceria envolvendo ANP, Ministério da Saúde, Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), foi iniciado no final de abril com uma oficina realizada em Remanso (BA) e prevê a realização de outras 10 oficinas com pescadoras de 16 estados brasileiros. A expectativa é beneficiar 450 pescadoras diretamente.
Desde criança estas trabalhadoras têm o corpo modificado: perdem em agilidade e equilíbrio, a pele enruga, os músculos atrofiam e o ar entra seco. A rotina de trabalho das pescadoras envolve riscos à saúde em função de Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e pela exposição ao sol — que podem causar o câncer de pele, dermatites e o envelhecimento precoce. Além disso, podem vir a desenvolver problemas ginecológicos em razão das horas que passam em contato com águas poluídas e enlameadas. Em relação aos homens, as mulheres, em geral, adoecem mais rápido, pois são submetidas cotidianamente não só aos serviços relacionados a pesca, mas também às tarefas domésticas. Maria Regina conta que existem muitos casos de mulheres com membros atrofiados e problemas de coluna, especialmente na região de Laguna, e a maioria delas não tem conhecimento da gravidade. Para a articuladora, as doenças ocupacionais, relacionadas ao esforço repetitivo a partir do trabalho da pesca, não são reconhecidas pelo INSS.
O procedimento para que seja reconhecida uma doença ocupacional, de acordo com o INSS, envolve a realização de uma perícia médica a partir do requerimento do assegurado. Na prática não basta a trabalhadora estar doente, é necessário que a doença tenha relação direta com a atividade que é exercida. Somente desta forma ela poderá receber o auxílio-doença, benefício concedido quando é comprovado que a pescadora está inapta para o exercício profissional. Para a ANP, o que dificulta o acesso das pescadoras ao benefício previdenciário é a ausência de estudos e notificações sobre as especificidades das doenças laborais relacionadas à atividade pesqueira.
De perto, as pescadoras sempre acompanharam o mar. Conhecem sua voz, a mistura de seu hálito e a luz viva que recai sobre ele toda manhã. Vivem dele e com ele dividem histórias para vida inteira. “No jogo de inversão que elas próprias se constituem, entre família, marido e casa, tudo consegue ser atendido graças à fuga momentânea que o mar propicia. Outras viam o mar como um espaço para recuperação da sanidade, do equilíbrio e da vontade de viver diante dos problemas enfrentados, como situações de violência e perdas”, comenta Rose Gerber.
(Do https://medium.com/@zeroufsc/)