segunda-feira, 5 de março de 2018

MANEMÓRIAS

"Veduta della cittá di Nuestra Senhora Del Destero, Nell'Isola di S. Caterina" (Vista da cidade de Nossa Senhora do Desterro, na Ilha de Santa Catarina), século 18, edição italiana - Coleção Marli Cristina Scomazzon/Reprodução ND

Retratos da cidade marítima que se perdeu no tempo

Florianópolis foi um dos três portos mais importantes do litoral brasileiro entre os séculos 18 e 19

por CARLOS DAMIÃO

No mês em que Florianópolis comemora 345 anos de fundação e 292 anos de emancipação (dia 23), ressurgem questões importantes sobre a cidade, provocadas pelos pesquisadores Marcondes Marchetti e Marli Cristina Scomazzon. Uma delas foi apontada durante longa entrevista no dia 22 de fevereiro, cuja primeira parte saiu na edição dos dias 24 e 25 de fevereiro do ND: por que existem milhares de aquarelas, gravuras e desenhos sobre Desterro, elaborados por navegantes estrangeiros durante os séculos 18 e 19? Sendo que pelo menos três colecionadores acumulam a maior parte dessa iconografia no Brasil – a própria Marli Cristina, o médico catarinense Ylmar Corrêa Neto e o casal Paschoal e Ruth Grecco, de São Paulo. Podem existir, ainda, conforme avaliação dos pesquisadores, pelo menos mais três mil documentos do gênero espalhados pelo mundo, em galerias e arquivos públicos ou particulares.

Uma explicação básica – e pouco valorizada – para tantos navegadores terem documentado visualmente aspectos de Desterro/Florianópolis está no fato de que a Ilha de Santa Catarina foi, durante o período colonial, um ponto estratégico da ocupação portuguesa e o terceiro porto mais importante da costa brasileira (os outros eram Salvador e Rio), uma espécie de parada obrigatória dos navios que cumpriam itinerários rumo ao extremo-Sul da América e vice-versa. Estima-se que mais de três mil embarcações cumpriram essa rota durante mais de dois séculos, de onde a conclusão sobre a existência de pelo menos igual número de registros visuais. Como não havia fotografia à época, as expedições em geral tinham pelo menos um desenhista ou aquarelista a bordo, que reproduzia paisagens, edificações, tipos humanos e elementos da flora e da fauna.
Tucano existente na Ilha de Santa Catarina, registro de 1803 - Coleção Marli Cristina Scomazzon/Reprodução ND


Aterro enterrou Desterro
Florianópolis é uma cidade marítima histórica, embora tenha perdido esse valor nos últimos 92 anos. Primeiro, pela construção da Ponte Hercílio Luz, que praticamente extinguiu o transporte marítimo entre Ilha e Continente; segundo, pela desativação do porto localizado na região central (Rita Maria/Arataca); depois, pelo efeito destruidor causado pelo aterro da baía Sul, que afastou o mar para bem longe da Praça Fernando Machado e do Mercado Público. Como disse na década de 1970 o vereador Valdemar da Silva Filho (Caruso), o aterro representou “o enterro do Desterro”. A simbologia dessa frase é muito forte até hoje, porque, de fato, a cidade marítima sucumbiu naquele período (1971-1975).

A volta dos cruzeiros
Sobre o porto central, tanto Marli Cristina Scomazzon quanto Marcondes Marchetti observam que “na verdade, não era o porto principal de Desterro, ali predominavam embarcações de pequeno e médio porte”. As grandes embarcações ancoravam na região de Anhatomirim, que tinha calado maior; de lá partiam lanchas e barcos levando os tripulantes em direção às áreas povoadas da ilha, inclusive o Centro. Os chamados “pombeiros” navegavam entre a ilha e os navios, levando mantimentos em suas pequenas embarcações. “Na verdade, a Rita Maria/Arataca era um grande atracadouro, que serviu durante muito tempo aos navios da Hoepcke. Os maiores navios atracavam na área de Anhatomirim”, confirma o especialista Leandro Mané Ferrari, empresário do setor náutico, fundador da Acatmar (Associação Náutica) e gerente aquaviário da Secretaria Estadual de Infraestrutura.

Tal situação histórica se repete no presente: na semana passada, autoridades estaduais e do município anunciaram a volta dos cruzeiros marítimos, depois de nove anos, com uma escala-teste prevista para o dia 24 deste mês. O gigante Preziosa, da MSC, com capacidade para 4.500 passageiros, será o primeiro transatlântico a chegar à região da Ilha de Santa Catarina, fundeando em área específica de Canasvieiras, onde a profundidade mínima de segurança é de 11 metros.

Leituras indispensáveis
“Ilha de Santa Catarina – Relatos de Viajantes Estrangeiros nos séculos XVIII e XIX” é a melhor referência bibliográfica sobre as visitas de navegadores a Desterro/Florianópolis. A histórica primeira edição (1979) foi coordenada por Marcondes Marchetti, atual presidente do Conselho Estadual de Cultura, e Martim Afonso de Haro. A produção ficou a cargo de Gilberto Gerlach, outro pesquisador incansável, autor de duas obras mais recentes sobre a capital catarinense – “Desterro – Ilha de Santa Catarina” e “Ilha de Santa Catarina – Florianópolis”, com centenas de reproduções de documentos, desenhos, gravuras, pinturas e aquarelas.

[Colaborou, na revisão de tradução do francês, a professora Fedra Rodriguez. Merci].

(Da coluna do Carlos Damião, domingo no https://ndonline.com.br/)

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