Homens que passaram meses à deriva ensinam como enfrentar a solidão, a falta de provisões e o desespero.
Texto Erica Montenegro
Alain Bombard sempre foi aficionado pelas histórias de vítimas de desastres marítimos – histórias em que o desfecho é muitas vezes o suicídio para evitar a agonia de esperar por socorro. E, exatamente por isso, decidiu virar um náufrago. No dia 22 de outubro de 1952, o médico francês partiu das ilhas Canárias, na costa da Espanha, para passar quantos dias fossem necessários no mar. Seu objetivo era provar que dá para sobreviver no oceano e que as mortes em alto-mar são quase sempre desnecessárias, provocadas mais pela ignorância e pelo desespero do que pela falência física. Depois de 62 dias à deriva, Bombard desembarcou nas ilhas Barbados, no Caribe. Durante a jornada, alimentou-se dos peixes que pescava e do plâncton que coletava (a lancha pneumática que usou estava equipada com varas e redes de pescar). Emagreceu 24 quilos, teve problemas de visão e delírios de consciência. No fim, concluiu que resistir havia sido bem mais difícil do que imaginava: “Quando se está à deriva, a metade do tempo se passa temendo a morte. A outra metade, a desejando.”
Mas não foi só isso que Bombard aprendeu. Sua experiência provou que a vida à deriva é suportável desde que o náufrago se valha dos recursos que o próprio oceano oferece. Ele, por exemplo, livrou-se do escorbuto (carência de vitamina C) da mesma forma que as baleias: comendo plâncton. Seus registros minuciosos foram úteis para dezenas de marinheiros. Até agosto deste ano, quando morreu, Bombard recebia numerosas cartas agradecendo suas dicas.
Como o médico francês, os sobreviventes de naufrágios costumam escrever testemunhos detalhados do que viveram. A Super reuniu as experiências mais impressionantes desses heróis da resistência – homens que tiveram que enfrentar situações tão limites quanto o canibalismo – e conta o que é preciso fazer na metade do tempo em que você estiver lutando contra a morte.
1. Conseguir alimentos
Embora rodeados de água e peixes por todos os lados, matar a sede e a fome são tarefas árduas para náufragos. A água do mar não é adequada para o consumo humano já que o sal altera a composição química do sangue e leva a uma série de problemas físicos – o quadro começa com alterações da consciência e evolui para delírios, convulsões, coma e, finalmente, a morte.
Mas durante sua experiência, Alain Bombard conseguiu driblar a dificuldade usando um expediente comum aos pescadores polinésios: espremer água dos peixes. Embora pouco atrativa, a água retirada da carne dos peixes tem uma concentração de sal baixíssima, bastante semelhante à que está em nosso corpo. Os peixes disponíveis, no entanto, não eram muito numerosos e a quantidade de água espremida era pouca para garantir a sobrevivência de Bombard. Assim, o médico francês decidiu usar o líquido doce para diluir a água do mar e fixou meio litro dessa água diluída por dia como uma quantidade segura para náufragos. Bombard também determinou que essa água deveria ser bebida em pequenas quantidades, continuamente. A teoria do médico era de que, na maior parte das vezes, homens à deriva se abstinham de beber qualquer coisa por muito tempo. Quando, desesperados, recorriam à água do mar, ingeriam uma quantidade muito grande e acabavam causando a inflamação dos rins. A conseqüência, pouco tempo demais, era uma morte bastante dolorosa.
Já os peixes, apesar de abundantes no oceano, nem sempre são fáceis de pegar. Afinal, na maioria das vezes, homens e mulheres atirados ao mar acabam totalmente desprevenidos, sem um anzol ou um canivete que seja. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o marinheiro colombiano Luis Alejandro Velasco em uma noite de fevereiro de 1955.
Uma tormenta, no mar do Caribe, arrancou Velasco do convés do Caldas, navio em que viajava. Por sorte, a ventania também lançou ao mar um bote salva-vidas onde o marinheiro pôde se abrigar. Sem água, comida ou socorro à vista, Velasco comprovou que qualquer coisa mastigável vira um manjar dos deuses quando se está à deriva.
No 6º dos 10 dias que duraram seu infortúnio, estava esfomeado ao ponto de tentar comer a roupa que usava no corpo. “Eu parecia uma fera, tentando despedaçar os sapatos, o cinto e a camisa com os dentes”, contou no livro Relato de um Náufrago, escrito por Gabriel García Márquez. Foi quando achou 3 cartões de visita no bolso da calça e fez deles seu banquete. Apesar de não lá muito nutritiva, a “refeição” lhe deu coragem para continuar lutando por sua vida. “Quando senti aquele montinho de papel molhado chegar ao estômago, percebi que sobreviveria.”
2. Enfrentar um dos maiores tabus da humanidade: canibalismo
Há de se ter em conta que situações extremas requerem medidas extremas. “Resistem os que estão dispostos a fazer qualquer coisa para sobreviver”, diz o jornalista americano Laurence Gonzales, autor de Deep Survival: Who Lives, Who Dies and Why (“Sobrevivência Profunda: Quem Vive, Quem Morre e Por Quê”, sem versão para o português). E quando Gonzales fala qualquer coisa, é literalmente isso que ele quer dizer. Canibalismo, por exemplo, é uma opção real de sobrevivência entre náufragos. Real e recorrente. No mar, o costume de decidir no palitinho quem alimentará os demais é aceito faz tempo e aparece em diversos relatos.
Um dos primeiros casos documentados aconteceu na primeira metade do século 17. Sete marujos ingleses que partiram da ilha de St. Kitts, no Caribe, foram arrastados para o mar aberto. Após 17 dias sem comer um peixe sequer, um dos tripulantes sugeriu que sorteassem quem seria a refeição dos demais. Calhou de a sorte apontar o próprio autor da idéia e, depois de novo sorteio para ver quem o executaria, ele foi morto e comido.
Os sobreviventes do naufrágio do baleeiro Essex, episódio que inspirou Herman Melville a escrever Moby Dick, passaram pela mesmíssima situação em 1820. Sua história, uma das mais aterradoras do não pouco aterrador gênero “relatos de naufrágio”, tem surpreendentes componentes de ironia. Primeiro porque o navio, que caçava baleias, naufragou tombado justamente por uma delas. Depois porque em vez de seguir para as ilhas Marquesas, que eram o destino mais próximo de onde estavam, os 20 tripulantes preferiram tentar chegar à América do Sul. Optaram pelo caminho mais longo porque supunham que nas Marquesas havia índios antropófagos – ou seja, adeptos de humanos como prato do dia.
Depois de quase 3 meses vagando em pequenos barcos pelo oceano Pacífico, e prestes a morrer de inanição, os marinheiros americanos perceberam que não havia outro jeito de escapar da morte a não ser encarar a realidade e comer um dos companheiros. O premiado com o dever do sacrifício foi Owen Coffin, de 18 anos, que acabou assassinado pelo melhor amigo, Charles Ramsdell, de 16. “O rapaz foi liquidado rapidamente”, lembraria, mais tarde, o capitão do Essex, George Pollard Jr., primo do “almoço”. “E não sobrou nada dele.” Coffin foi só o primeiro.
Quando foram encontrados, 93 dias depois, os 8 sobreviventes do Essex lambiam os ossos dos companheiros e temiam que seus salvadores lhes roubassem a pouca reserva de carne humana de que ainda dispunham. Será que seria exagero dizer que eles se transformaram nos mesmos canibais que tanto medo lhes inspiravam?
3. Acreditar na divina providência
Pesquisador de uma área chamada psicologia da sobrevivência, o britânico John Leach afirma que situações extremas empurram os protagonistas a descobrir dentro de si forças que jamais imaginaram. Isso vale para a disposição de comer carne humana, mas também para a vontade de sobreviver mesmo diante de situações que parecem lhes dizer que não há saída. O que fazer, por exemplo, quando se está em uma nau quebrada, no meio do oceano Atlântico, cercado por piratas sanguinários e acompanhado por 50 almas sedentas e famintas?
Rezar, rezar e rezar, responderia o português Jorge de Albuquerque Coelho, que sobreviveu a este infortúnio em 1565. A maior parte dos relatos sobre esse português – que acabou se tornando donatário da capitania de Pernambuco, no Brasil Colônia – o descrevem como um homem firme, justo e temente a Deus e contam que ele enfrentou o naufrágio da nau Santo Antônio como quem passa por uma provação divina.
Enquanto a desesperançada tripulação corria ao único padre a bordo para a última confissão, Albuquerque Coelho repetia a seus companheiros de tragédia: “Confiemos na misericórdia daquele Senhor cuja bondade é infinita, que se compadecerá de nós e nos livrará deste trabalho. Nunca ninguém pediu misericórdia com pureza de coração que lhe fosse negada.”
Não há como provar que Deus tenha sido mesmo o responsável pelo ocorrido, mas o fato é que 22 dias depois da tormenta que deixou a Santo Antônio “qual um pedaço de pau velho”, o português Albuquerque Coelho desembarcou são e salvo em Portugal. Além dele, havia outros 30 sobreviventes – entre eles, o padre.
4. Apreciar as pequenas coisas
Para combater a loucura provocada pela solidão, o pescador taitiano Tavae Raioaoa aproveitou seu naufrágio, em 2002, no Pacífico, como um momento de pausa na vida para fazer reflexões existenciais. Durante os 118 dias que passou à deriva, em seu barco de pesca, Tavae fez um balanço de sua história pessoal. Ou seja, embarcou em uma espécie de retiro espiritual gratuito – prática pela qual muita gente anda pagando as maiores fortunas hoje em dia.
O balanço lhe deu forças para continuar vivo. “Pessoas que têm compromissos firmes com a vida enxergam tragédias como meros obstáculos a serem ultrapassados”, diz John Leach. Foi exatamente o que salvou Tavae. Ele encarou o naufrágio como uma conseqüência de seu povo ter trocado o mar pelas tentações hedonistas oferecidas pelos colonizadores e resolveu pagar a penitência de cabeça erguida.
A monotonia de não ter nada a fazer a não ser esperar por socorro obrigou Tavae a entrar em contato profundo consigo mesmo e com a natureza que o rodeava. “Cada nascer do dia me dava esperanças”, escreveu no livro Tão longe do Mundo, em que conta sua experiência. O momento mais difícil foi quando acabou o estoque de água doce (ele não conhecia as dicas de Bombard). Estava morrendo quando uma chuva o salvou.
Alternando momentos de sanidade com delírios de consciência, Tavae passava o tempo conversando com os peixes, com Deus, com seu passado e até com as partes de seu corpo. “Eu falava sem parar, negociava comigo mesmo para sentir menos dor.” De volta à terra firme, quase 4 meses depois, o pescador era um outro homem: estava menos amargo e mais sábio.
5. Tirar proveito das companhias
Tubarões são companheiros tão indesejáveis quanto constantes nas viagens sem rumo dos náufragos. E sua presença é quase sempre anúncio de tragédia. Em 1960, quando o navio americano Albatross foi a pique, no Caribe, o capitão e alguns membros da tripulação conseguiram se salvar em botes. Mas o sangue dos feridos atraiu dezenas de tubarões que, excitados pelo cheiro, cercaram as embarcações e tentaram virá-las com seus focinhos. Os homens do Albatross defenderam-se golpeando as feras com remos e, na falta destes, usando os próprios punhos. Foi uma batalha encarniçada em que 4 náufragos acabaram devorados.
Mas há casos em que a presença dos tubarões não é de todo ruim. Durante os dias em que passou no mar, o bote salva-vidas de Luis Alejandro Velasco era cercado por eles pontualmente às 5 da tarde (um dos poucos bens do colombiano durante o tempo à deriva era um relógio de pulso). É claro que Velasco aguardava este momento com extremo pavor, mas, no 7º dia à deriva, ele foi a salvação do marujo. Os predadores involuntariamente colaboraram para a sobrevivência do colombiano ao perseguir um peixe que acabou pulando para dentro do bote dele. Resultado: quem poderia comê-lo, acabou lhe dando comida.
6. Estabelecer rotinas
Em pleno século 20, o americano Steve Callahan cruzava sozinho o Atlântico, quando uma onda gigante empurrou o barco em que estava para o fundo do oceano. Apesar de todo o preparo da embarcação para situações de emergência, Callahan não teve tempo sequer de mandar um SOS. Em 1982, ele se viu tão vulnerável quanto os homens que se perdiam nos mares na época dos descobrimentos. Passou 76 dias à deriva em um bote e, para manter-se firme, resolveu contar com a ajuda de um “capitão” imaginário. O “capitão” dava ordens como pescar, comer, arranjar o que beber, proteger-se do sol e do frio, cuidar da própria segurança e da manutenção do bote. Também dava broncas na “tripulação” quando Callahan se mostrava desanimado. “Eu podia ouvir a voz dele”, declarou em entrevistas, já em terra firme. Com este truque da própria cabeça, Callahan controlou a si mesmo e evitou a pior das agonias dos homens à deriva: a vontade de interromper o sofrimento, afogando-se no mar.
(Da Revista Superinteressante)
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