quarta-feira, 23 de setembro de 2020

ÓLEO E SANGUE NOS MARES DE SC

Foto Arquivo - Não faz parte da matéria do ND
Abate de baleias para extração do óleo ocorreu até 1960 em praias de Florianópolis
Sul da Ilha de Santa Catarina foi palco de caçadas sangrentas

por Edson Rosa
FLORIANÓPOLIS

Hoje são fotografias ou o simples avistamento, mas até 1960, era o óleo de baleia o que mais interessava aos caçadores do mar. Tataraneto do capitão Izidoro Pires, açoriano que veio a Desterro no século 18 com a missão de fundar a primeira armação, o pescador e bombeiro aposentado Aldo Corrêa de Souza, 73, se lembra com detalhes das caçadas na ponta sul da Ilha. Enquanto conserta a rede de anchova, de costas para o rio Sangradouro, conta que o arpão era um cano de ferro com mais ou menos 1,20 de comprimento e que em uma das pontas era soldada uma lança de uma polegada muito bem afiada.


Na outra ponta, um pedaço de madeira era embutido e parafusado, formando uma espécie de cabo para facilitar o manuseio. Na parte oca, o arpoador colocava estopim com espoleta, duas bananas de dinamite e papel picado, tudo socado em pedacinhos. “O cano era fechado com tijolo maciço, para a carga não sair pela culatra”, diz. 


Para completar o ritual sangrento, eram colocadas cabeças de fósforos, enquanto a ponta do estopim era descascada. Lentamente, a embarcação a remo se aproximava da baleia, sempre pela cabeça para evitar golpes com a cauda. O arpoador esperava o melhor momento de lançar, mirando do respirador para trás ou embaixo das barbatanas. Quando a franca era atingida, mergulhava para tentar se livrar da lança. Porém, conforme sacudia o corpanzil, mais o ferro o penetrava. 

Nesse momento, o estopim acionava a espoleta, e havia a explosão. O esguicho de sangue subia pelo menos dez metros, e deixava enorme mancha avermelhada no mar. Abatida, a baleia era arrastada à praia em meio à euforia de caçadores e curiosos em terra, onde começava a segunda parte do massacre.


Engenho de azeite é primeiro emprego
Com facões afiados, os homens se encarregavam de carnear a franca, cortando grossas camas de gordura. O toucinho de até meio metro de espessura era fervido em grandes tonéis de cobre, de onde o óleo era repassado a latões de 200 litros. O produto, que no período colonial era usado na iluminação pública e na construção de casas, até 1960, era exportado para lubrificar o maquinário da indústria japonesa. 

O aposentado Darci Brasiliano Vieira, 70, que reforça a aposentadoria como guia turístico na Armação, nunca foi para o mar, mas na adolescência ganhou seu primeiro dinheiro com as caçadas às baleias. “Quando eu era garoto, trabalhava cortando e fervendo toicinho para fazer óleo. Cheguei a comer, mas a carne é muito forte”, recorda.


Darci e Aldo Corrêa, que trabalharam entre 1957 e 1960, representam a última geração de caçadores da Armação vinculados à Pesqueira Pioneira da Costa. “Esta enseada, do Matadeiro ao Pântano do Sul, é um grande cemitério de baleias. Tudo tombado pelo patrimônio histórico [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]”, diz Darci. 

Dependente da sazonalidade do turismo e das incertezas da pesca, Darci usa a história da Armação para cativar visitantes, mas lamenta a falta de iniciativa do poder público e da iniciativa privada para resgatar a baleia como fonte de renda não letal para a comunidade local de pescadores. “Seria bom, por exemplo, se criassem um centro cultural e projeto para turismo de observação, embarcado ou pelas trilhas”, sugere.


Marcas do passado sangrento
Uma das atrações turísticas de Imbituba, a 90 km de Florianópolis, o Museu da Baleia, ocupa antigo casarão onde, entre o século 18 e 1973, a carne e a gordura de cerca de 400 baleias eram processadas por ano. A finalidade do local agora é outra: contribuir para a preservação da espécie e na educação ambiental. 

Inaugurado em 2003, o museu não serve apenas para reconstituir a história econômica da região a partir do século 17, quando foi criada a armação austral de caça da baleia de Imbituba. Mas alertar para o bom negócio que é preservação dos mamíferos do mar. O acervo tem cópias de documentos, como o contrato que o marquês de Pombal usou para deflagrar a pesca da baleia no Sul do Brasil em 1796. Preserva contratos de compra e venda de óleo de baleia, usado para iluminar cidades como Rio e São Paulo, e na argamassa e reboco de construções históricas, como igrejas e casarões coloniais. Também expõe fotos e utensílios que marcaram esse ciclo econômico da cidade. 

Com população de 35 mil habitantes, Imbituba vive da renda do porto privado e do turismo. No inverno, são as baleias-francas que, de julho a outubro, ajudam a girar a economia local, movimentando pousadas e restaurantes também de Garopaba e Laguna. 

A condutora ambiental Maria Aparecida Ferreira acredita que a proibição do turismo embarcado para observação reduzirá, também, o interesse de visitantes pelo acervo do museu. “O importante é aproveitarmos este momento para discussão ampla sobre o impasse e o futuro da APA”, diz.


BALEIA-FRANCA - APA (Área de Proteção Ambiental)
O que é: Unidade de Conservação Federal criada por decreto em 14  de setembro de 2000, para proteger a espécie Eubalaena australis, a baleia-franca austral, que vem ao Sul do Brasil para ter seus filhotes e amamentá-los nos meses de junho a novembro. Define normas de conduta e manejo das atividades humanas a fim de preservar os atributos naturais relevantes e assegurar a qualidade de vida das pessoas.
Artigo 15 da Lei Federal 9.985: APA é área em geral extensa, com certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais, especialmente importantes para a qualidade e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
Objetivo: Proteger, em águas brasileiras, a baleia-franca austral, ordenar e garantir o uso racional dos recursos naturais da região, ordenar a ocupação e utilização do solo e das águas, ordenar o uso turístico e recreativo, as atividades de pesquisa e o tráfego local de embarcações e aeronaves.
Onde fica: Abrange 156.100 hectares, com aproximadamente 130 quilômetros de extensão com manguezais, restingas, dunas, florestas de planície quaternárias, praias, promontórios e ambientes lagunares. Estende-se da ponta Sul da praia da Lagoinha do Leste, no Sul de Florianópolis, ao Balneário do Rincão, ao Sul do Cabo de Santa Marta.
Municípios: Florianópolis, Palhoça, Paulo Lopes, Garopaba, Imbituba, Laguna, Tubarão, Jaguaruna e Içara.
Órgãos Similares (Não confunda)
Projeto Baleia Franca: Criado em 1982, anterior ao decreto de criação da APA, o Projeto Baleia Franca iniciou suas atividades de pesquisa e monitoramento, além de educação e conscientização públicas para monitorar e garantir a sobrevivência em longo prazo da população remanescente de baleias-francas no Sul do Brasil. Com sede no Centro Nacional de Conservação da Baleia Franca, na Praia de Itapirubá, Imbituba, é mantido por parceria entre a IWC/Brasil (Coalizão Internacional da Vida Silvestre) e Petrobras, desenvolvendo atividades de pesquisa e conservação em longo prazo.
Instituto Baleia Franca: Por meio da ciência e educação, busca o desenvolvimento econômico e sustentável da região, servindo como agente facilitador do acesso ao conhecimento ás comunidades da APA da Baleia Franca. Com monitoramento dos animais, o Instituto Baleia Franca visa à preservação da espécie Eubalaena australis, em Santa Catarina, auxiliado pelo levantamento de dados científicos sobre os comportamentos, locais de ocorrência e número estimado de indivíduos na região Colabora na elaboração e no cumprimento de normas para turismo de observação, mergulhos e aproximações.
(Publicado em 17/08/13-16:53 por: Redação ND - www.ndonline.com.br).

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