quarta-feira, 1 de abril de 2020

A OSTRA NOSSA DE CADA DIA


Maiores cultivadores de ostras e mexilhões do país, maricultores de Florianópolis se sentem isolados

JOANA ZANOTTO SABBÁ - 30 DE MARÇO, 2020

Uma porção de gente vive da ostra no Ribeirão da Ilha. O mar tranquilo da baía bem ao sul da cidade comporta a maior produção de ostras no Brasil. As fazendas marinhas, como são chamadas, demandam manejo continuado ao longo do cultivo. Por estes dias as sementes foram colocadas no mar para a temporada de ostras daqui a uns oito meses. Nas diferentes fases do cultivo, as ostras são retiradas do mar, peneiradas, separadas e instaladas novamente em espaços maiores. O crescimento é muito rápido. As sementes vão no berçário miúdas, do tamanho da cabeça de um alfinete, e em dez dias medem o tanto da unha de um mindinho. Os maricultores, que acabaram de instalar as sementes no mar, estão aflitos, sem perspectiva de conseguirem se recuperar tão cedo do impacto sentido de imediato em suas atividades.

Enquanto cuidam do crescimento das milhões de sementes, que foram compradas por um custo alto do laboratório da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as vendas de ostras permanecem paradas, e devem continuar assim. Apesar da relevância da produção dos moluscos em Florianópolis, a cadeia produtiva essencialmente artesanal não conta com o amparo do estado. Cultivadores encontram dificuldades de acessar as linhas de crédito nos programas de financiamento disponíveis. A carência de políticas públicas se evidencia neste momento, em que as comunidades juntam esforços se isolando para a contenção da doença viral que se alastra pelo mundo.

“Na maricultura é cada um por si”, lamenta Rita Cassia, que há vinte anos abandonou a carreira de farmacêutica para se dedicar à maricultura. “Me envolvi de uma tal maneira que não tinha mais como sair. No início era só eu, a Gioconda, a dona Eva. Tinham pouquíssimas mulheres e o preconceito era muito grande.” Ainda que integrando a associação de Maricultores do Sul da Ilha (Amasi), Rita não vê uma saída coletiva iminente. Segundo informações da prefeitura, os produtores na capital estão organizados em 5 associações e 1 cooperativa, totalizando 90 maricultores em atividade na cidade. “A gente não tem reconhecida a atividade, apesar da maricultura ser responsável por 30% da arrecadação do município. Quantos restaurantes ela fomenta, essa iguaria?”, lamenta Rita. Ela comenta que é muito raro financiamento no setor. “Às vezes tem pelo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), mas é muito raro de se conseguir”
Rita Cassia se orgulha de ter começado a cultivar e vender ostras nativas na dianteira dos demais produtores / Foto de arquivo pessoal

A fazenda marinha de ostras, mexilhões e vieiras de Rita tem porte médio. Divide a localidade com o restaurante Empório Sul do Mar, um dos tantos de portas fechadas durante a quarentena, ao longo dos vinte quilômetros na rodovia Baldicero Filomeno, na ponta da ilha. “A gente tem que ter calma”, pondera Rita. Ela pretende manter o restaurante fechado mesmo que acabe o decreto nos próximos dias. Antecipou as férias remuneradas dos funcionários. Apenas dois de seus maricultores continuam trabalhando duas vezes por semana para dar seguimento ao manejo dos cultivos. Nesta temporada, por sorte, alojou 600 mil sementes no mar, 400 a menos do que de costume.

Os moluscos cultivados na fazenda são vendidos no próprio estabelecimento, em outros restaurantes e em uma peixaria. “Já estou sentindo o impacto. Eu creio que a gente só vai se refazer lá pra setembro”, calcula com esperança.

Dono do famoso restaurante Ostradamus, na Freguesia do Ribeirão, Jaime José de Barcelos é cauteloso. Aos 54 anos, não pensa em reabrir o restaurante tão cedo. “A gente tem que pensar na vida e saúde primeiramente. A gente tem que se preservar independente da idade. Não somos números.” Ele deve bancar o restaurante fechado de dois a três meses, pagando os funcionários. “O setor produtivo da maricultura vai ser afetado. Não tenha dúvida disso. A partir do momento que não conseguimos colocar na mesa e vender as ostras ao turista, temos um problema gigantesco. Queira Deus que isso passe logo”, roga Jaime.

Ele se mostra bastante consternado com a situação em que as pessoas se encontram e a postura do governo. “O governo tenta passar a bola pra gente. A gente não tem como arcar com o salário das pessoas por meses. A gente já tem a conta alta por sustentar essa máquina”, reclama, em alusão ao pagamento de impostos. “Eu estou procurando me manter ocupado para não dar nó na mente e deixar a criatividade em ordem. Se eles garantissem o básico seria suficiente.” Ostradamus é um restaurante luxuoso de ostras e cerca de um milhão e 200 mil sementes foram colocadas no mar para a próxima safra.

O abandono não é de agora

Mais pro final da Baldicero Filomeno, na Caieira da Barra do Sul, Felipe Ricardo Malagoli e a companheira Gabriela Ivonesia de Almeida são sócios da fazenda marinha Bela Ostra desde 2013. O pai de Gabriela trabalha há vinte anos com os mariscos. A maricultura tem o caráter predominantemente familiar. Felipe é vice-presidente da associação de Maricultores do Sul da Ilha (Amasi), que representa aproximadamente a comercialização de 60 a 70% das ostras no Brasil todo. De acordo com ele, a demanda histórica dos maricultores é ampliar o acesso às linhas de crédito, que são muito limitadas. O programa de financiamento pede como garantia para a adesão a comprovação de um bem, e assim muitos não conseguem acessar os benefícios pois o principal bem dos produtores, a fazenda marinha, é por cessão de uso.

“A gente até conseguiu um fundo do estado bem interessante: tu pegas um determinado valor parcelado em cinco anos, e se em quatro anos for pago certinho, o quinto ano não precisa pagar. Então teoricamente aquilo que a gente for comprar sai mais barato, ainda que se comprássemos à vista. Porém é bem trabalhoso conseguir essa linha de crédito, o valor é muito limitado e ainda tem de dar como garantia um imóvel em Florianópolis para conseguir o crédito, o que é bem complicado.” O maricultor avalia que o Pronaf tem piorado muito nos últimos três anos, e agora, mais ainda. “Uma linha de crédito é muito importante pra gente investir e conseguir avançar, fazer uma linha de produção maior, ofertar mais produtos e popularizar mais o valor. Seria bem interessante.”

Felipe diz que dentro do grupo da associação tem se fomentado um debate sobre como sobreviver na pandemia, mas que, até agora, não chegou a conclusão nenhuma. “É uma situação muito grande, que exige um trabalho do governo municipal, estadual e federal”, cobra o maricultor. Em sua situação particular, ele avalia que a “gordurinha” das vendas de boa parte de sua safra no verão não dura dois meses. “Como não há continuidade de venda, a retomada pós-pandemia – que não tem nem data – eu acredito que vai ser bem complicada porque o nosso produto não é tão barato quanto os produtos básicos como arroz, feijão e macarrão.”

O casal proprietário da Bela Ostra colocou 400 mil sementes no mar – são nano produtores, o que os torna vulneráveis na cadeia produtiva. “A gente até consegue fazer o manejo das lanternas de ostras na fazenda marinha, mas a gente não consegue efetuar venda porque a indústria está parada. Os parceiros fundamentais são as indústrias que vendem para restaurantes, que estão fechados. Ou que vendem para algumas peixarias, que praticamente estão paradas também. Até algumas peixarias que abriram não querem pegar ostra porque não tem tempo de prateleira. A ostra é vendida viva e fica no máximo cinco dias fora d’água. As peixarias preferem focar nos produtos que são congelados ou resfriados e conseguem ter um tempo maior. A gente vai ter que trabalhar de forma colaborativa daqui pra frente, mas a gente vai vender pra qual consumidor?”, questiona Felipe.

Difícil para os produtores, pior para os funcionários

A estabilidade não é uma garantia para os funcionários dos produtores de moluscos no elo mais fraco da linha. Os maricultores que trabalham por dia via contrato ou sem nenhum contrato podem ficar em uma situação complicada daqui pra frente. Na sexta-feira da semana de início da quarentena em Santa Catarina (20/3), Diolei, de 32 anos, e seu colega arrumavam as boias para o mar. Morador do Ribeirão, o maricultor trabalha na fazenda marinha Marítimo e, quando sai, continua o expediente na fábrica de embalagens do mesmo proprietário. “As embalagens são pra mandar as ostras para fora. Tá tudo fechado.” Na fábrica, recebeu férias remuneradas logo de cara, mas no rancho ainda desconhecia o rumo nos dias seguintes. A incerteza é grande.
O maricultor Diolei pegou férias na fábrica de embalagens. Na fazenda trabalha nas boias que vão ao mar / Joana Zanotto

O movimento nas peixarias à beira da Semana Santa

Rodrigo Oliveira, 47 anos, sócio da peixaria que leva o nome da família, sente tristeza ao contar o que tem visto no Mercado Público, em pleno centro da cidade. O mercado está totalmente vazio na quarentena. E como se quisesse se assegurar de não ter exagerado no tom da sentença, o comerciante enviou uma fotografia de prova pelo whatsapp mostrando as peixarias sem viva alma. Rodrigo, que tem íntima relação com o mercado, onde anda desde os doze anos, se comove. A peixaria Oliveira pertencia ao seu pai, dono de uma “saúde esplêndida” aos 82 anos.

As saídas de mercadoria da peixaria Oliveira tem sido principalmente para os clientes conhecidos que pedem por telefone. Ostras, ninguém nem está comprando. O vendedor, que já vinha ouvindo notícias ruins sobre a pandemia, foi se controlando, comprando pouco, para não ter de jogar nada fora. “Talvez eu tenha que jogar fora peixes, sardinha, que aguentam pouco gelo. Ostras e mariscos não dá nem para comprar porque chegando ao mercado aguentam apenas 60 horas. Elas não podem pegar gelo senão morrem, a friagem mata.”
Mercado Público praticamente vazio na quarentena / Foto pessoal

As peixarias em Florianópolis ficaram fechadas por pouco tempo. Quando o governador Carlos Moisés (PSL) decretou os serviços essenciais com permissão de funcionamento durante o período de isolamento social, houve a compreensão da prefeitura de que as peixarias não faziam parte do grupo liberado. O advogado atuante no direito da orla, da pesca e do pescador, Ernesto São Thiago, explica: “A prefeitura da capital interpretou restritivamente o decreto estadual, na minha visão jurídica, de forma correta, porque em se tratando de vigilância sanitária os termos tem de ser mesmo restritivos”. Portanto, o prefeito Gean Loureiro (DEM) decretou uma norma com a determinação de fechamento das peixarias acompanhando o governo estadual. Na segunda-feira que sucedeu o decreto (23/3), no entanto, ajustes foram oficializados no Diário Oficial do Estado da data, especificando as peixarias, entre outros serviços, como serviços essenciais.

A secretaria de Estado da Agricultura, da Pesca e do Desenvolvimento Rural de Santa Catarina esclarece que a recomendação é a de que “as peixarias, assim como açougues e mercearias, consideradas serviços essenciais podem permanecer em funcionamento, desde que evitem a aglomeração de clientes e reforcem os cuidados de higiene. Os maricultores também continuam trabalhando, alguns comercializam a produção em sistema de entregas e outros para peixarias.”

Mesmo reabertas, muitas peixarias estão receosas vendo a Semana Santa chegar. Conhecedor do mercado da pesca e maricultura, Ernesto acompanha as notícias e avalia que as vendas estão muito baixas. “Se as peixarias não vendem, não compram do pescador. Depende muito do perfil da clientela.” Na peixaria de um de seus clientes, que não faz venda direta ao consumidores, as vendas caíram 50%, porque, além de não estar vendendo para os restaurantes, não tem suficiente entrega domiciliar. “Os gastos com delivery não têm sido a prioridade das pessoas em situação de crise econômica. Muita gente foi afetada, e não se tem uma articulação conjunta.” Os clientes de Ernesto o consultam sobre os acontecimentos em busca de maiores informações.

Pro sul da ilha, no início da Baldicero Filomeno, ao lado da organização comunitária Canto do Rio, o estabelecimento de outra família não sente os mesmos efeitos do isolamento social das peixarias no mercado público. “Apareceu bem mais gente na semana. O pessoal está se preparando porque sabe que o tempo vai fechar.” Eduarda Correia de Barros, 28 anos, relata o aumento do movimento na peixaria desde o período de quarentena. De acordo com ela, estão vendendo bem todos os produtos. Na ocasião do primeiro decreto estadual, a Pedacinho de Mar deu um jeito de permanecer aberta, efetuando as vendas pela porta gradeada.
Diferente do que acontece no mercado público, a clientela está alta em peixaria no sul da ilha / Joana Zanotto

Restaurante de ostra se transforma em pizzaria

No norte da Ilha, o restaurante de classe média alta e fazenda marinha Freguesia, na praia de Santo Antônio de Lisboa, passou por transformações severas na quarentena. Os proprietários decidiram utilizar a cozinha industrial para produzir algo que fosse mais acessível e de fácil entrega domicilar. Portanto, agora trabalham com pizzas e porções congeladas. “Em tempos de crise as pessoas gastam menos e percebemos que caiu drasticamente a compra da ostra, vendemos também nos Supermercados Imperatriz”, diz Carla Cabral Costa, 43 anos, sócia do Freguesia com Leonardo Cabral Costa, 42 anos.

A proprietária dispensou dez de seus funcionários, ficando com uma equipe de 30 pessoas – 5% da equipe trabalha no financeiro e administração e os sócios na operação das entregas. O restante dos trabalhadores está de férias coletivas por dez dias. Segundo a empresária, o “caixa está zerado”. Ela acredita que vai perder 70% da safra de 20 mil dúzias prontas para o consumo. Para a próxima temporada estão com seis milhões de sementes no mar fazendo o manejo diariamente.

Posicionamento do Governo 

No âmbito federal, a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil, Tereza Cristina Correa, endereçou carta na quinta-feira (26/3) ao ministro de Estado da Cidadania solicitando que aproximadamente 1,2 milhão de pescadores profissionais artesanais e aquicultores sejam contemplados com o auxílio pecuniário (voucher) previsto pelo governo federal para mitigar os efeitos do confinamento social, que reduziu demasiadamente o comércio de pescado. Na carta, a ministra escreve que “a medida proposta se reveste de elevada importância pela magnitude de seu objetivo socioeconômico, posto que abrange uma camada sensível da sociedade brasileira, concedendo apoio para subsistência do setor durante o período que perdurar o estado de calamidade pública em nosso país”.

Sobre os incentivos e a relação do governo com os maricultores, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Agricultura, da Pesca e do Desenvolvimento Rural de Santa Catarina respondeu que, para dar suporte à comercialização de moluscos em Santa Catarina, através da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola do estado (Cidasc), “manteve o monitoramento microbiológico e de algas tóxicas mesmo nesse período de quarentena”. Além disso, em parceria com a Secretaria Nacional da Pesca e o Ministério da Agricultura, “criou grupos de Whatsapp para facilitar o contato entre proprietários de peixarias e pescadores.”

Sobre as possibilidades de linhas de crédito para os maricultores, a secretaria informou que “criou projeto de apoio para pequenos empreendimentos rurais e pesqueiros”. A intenção é injetar R$ 60 milhões na economia catarinense em três anos. A medida, segundo a secretaria, faz parte do Plano de Enfrentamento e Recuperação Econômica, desenvolvido pela Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE) do Governo do Estado. O projeto da Agricultura prevê o investimento de R$ 1,5 milhão, via Fundo de Desenvolvimento Rural (FDR), para subvenção aos juros de financiamentos adquiridos por agricultores e pescadores, num limite de 2,5% ao ano. Os financiamentos seguirão as regras de contrato feito com o agente bancário, podendo ter até 36 meses para pagar, com 12 meses de carência. Além disso, segundo a resposta enviada à Folha da Cidade, os pescadores têm acesso aos programas de financiamento ou subvenção ao juros já em funcionamento no estado.

Segundo a secretaria, não há previsão do impacto financeiro sobre o setor. A informação é que a pasta tem programas abertos para pescadores artesanais se eles preencherem alguns requisitos (cada programa tem sua especificação).Sobre o contato da secretaria com os pescadores e maricultores, a resposta é que a relação é muito próxima, via Câmaras Setoriais da Pesca e da Maricultora, onde representantes do setor são ouvidos e auxiliam na construção de políticas públicas, além de debater temas de interesse: “A Epagri possui um Centro de Desenvolvimento em Aquicultura e Pesca (Cedap), com pesquisas voltadas ao setor também. Além disso, os escritórios municipais da Epagri dão todo apoio técnico aos pescadores e maricultores.”

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