domingo, 1 de março de 2020

BALEIAS, BLUES & GUARAPUVÚS

Ilustração Andrea Ramos
"Depois do tempo da Tainha. No fim do tempo das Anchovas. Quando o vento sul congela e vira inverno. Quando os Guarapuvús começam a bordar de amarelo os morros sempre verdes e melancólicos.
Elas chegam de mansinho, pisando devagar, pé-ante-pé. Sempre juntas com o agosto, setembro, outubros. Imensas dentro da própria imensidão. Infinitas e oceânicas. Pacíficas e atlânticas.

Ilhas viajantes fugindo/procurando destino próprio. Imensos úteros. Cheios, ocupados, em busca de outras ilhas-úteros com mares calmos e águas mais quentes.
Imensas mães parindo e cuidando de imensos filhos. Um parto de deuses. As baleias voltam devagar, com muito cuidado. Ainda choram dores passadas, transpassadas e repassadas. Carnificina e mar de sangue gravados no chips da memória.
Seu óleo iluminando a estupidez truculenta do bicho-homem e bucólicas cidades europeias. Dando liga para a argamassa que construiu essa civilização.

 As baleias choram. E brincam. E pulam. E parem. E choram!

Gemem num desesperado blues. Grito quente, úmido e rouco. Grito de negro, de sofrimento, de perseguidos. Um blues infinito e profundo como o azul do mar.
Triste e contemplativo.

As baleias choram. E brincam. E pulam. E parem. E dançam!

 
Ternas crianças de muitos metros e algumas toneladas. Viajantes incansáveis de milhas e sonhos em mares nunca/sempre navegados. Acrobatas do tempo e da sobrevivência. Francas no nome e nos gestos.
A grande mãe.
 

As baleias dançam e traçam generosos gestos na coreografia infinita - e azul - do horizonte. As baleias dançam. Dançam e nos contemplam com a sabedoria dos deuses orientais e olhos de peixe.
Imensa lágrima cênica no oceano.
Pasmos e à sombra dos Guarapuvús, contemplamos paquidermicamente."

(Fernando Alexandre)

8 comentários:

RECICLADOS ARTÍSTICOS disse...

Esse Fernando quando escreve, parece que a gente pegou uma onda cracuda pelo peito, e depois que se sai do turbilhão, são paisagens e sentimentos que espumam pra tudo que é lado!!!!!!!!!!!ÚÚÚÚ....

Anônimo disse...

Queria ser uma baleia...

Carlinhos disse...

Que beleza, Fernando, há horas penso homenagear, emprestando ao gesto o pouco de poesias que sei, esses seres imensamente mansos, que ao surgirem nessa época e ao escolher "o nosso mar"como berçário nos confortam com a quase certeza de que vivemos ainda num lugar privilegiado, livres, ainda de determinadas ameaças.
Que Deus, Zeus e os Orixás as protejam...e os poetas também!
Um grande abraço, valeu,
Carlinhos

José Antônio Silva disse...

Fernando, texto encarchado de sentimento marítimo e achados poéticos, boiando entre baleias.
Muito bom!
grande abraço
Zé Antônio, às margens do Guaíba

Anônimo disse...

Tu arrepiô a gente Fernando!
Cosa mais linda este texto.
Pa qui dermica mente...
Pô, que dérmica mente!
Uma bela visão-sentimento vc teve
desses deuses cujos chips remoem lembranças de grossas paredes onde as células de seus óleos ficaram mumificadas. Abraço daqui de Laguna. Ma. de Fatima Barreto Michels.

Gui e Mi disse...

Lindo texto, parabéns!!! Muito linda a gravura tb! Michelle.

Lengo D'Noronha disse...

'Cogitationis poenam nemo patitur'.
E com ele tramas com palavras.
A nós, só desatar.

Grande, Fernando!

Nancy Macedo disse...

Olá Fernando... passo sempre por aqui, na verdade quase diariamente (rsrsr).... que coisa maravilhosa que acabei de ler...sei lá.. não tenho nem palavras...

Um beijo pra você e pra Andrea

Nancy Macedo (ex São Paulo.. agora Rio de Janeiro)