quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

MULHERES DO MAR


FOTO: JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES

CULTURA DAS MULHERES DO MAR DESAPARECE NA COREIA

Hado-Ri, Coreia do Sul – Certa manhã, Kim Eun-sil levou seu equipamento de mergulho para uma praia rochosa na costa leste dessa ilha coreana e, como tem feito há 60 anos, passou o dia praticando mergulho livre a mais de seis metros de profundidade e pescando frutos do mar com as mãos.

Kim, de 80 anos, acredita que ainda pode empenhar-se mais alguns anos em um trabalho que as mulheres têm feito há séculos, mas que está desaparecendo rapidamente.

'Eu ainda me viro bem no fundo do mar', afirmou, aquecendo seu corpo cheio de artrites na fogueira que preparou com caixas de feira em um cais enquanto esperava pelas outras mulheres. 'Para o meu marido foi moleza, ele mal precisava levantar os dedos. Até morrer, quatro anos atrás, ele não tinha o que reclamar de mim'.

Kim, assim como foi sua mãe, é uma haenyeo, ou uma 'mulher do mar'. Durante muitos anos, as mulheres do mar de Jeju, uma ilha na costa sul da Coreia do Sul, desbravaram as águas perigosas do Estreito da Coreia, mesmo durante os invernos mais frios. Usando apenas pés-de-pato e máscaras de mergulho – sem equipamentos de respiração – elas vão ao fundo do mar, onde procuram abalones, conchas e polvos.

O trabalho é feito tradicionalmente por mulheres, apelidadas de Amazonas da Ásia, em um costume que tem muito a ver com a história triste da ilha e sua geografia.

A inversão dos papeis de gênero tradicionais, com as mulheres sendo as principais responsáveis pelo sustento da família, fez a ilha fugir das relações patriarcais da sociedade coreana.

Entretanto, o trabalho é duro e perigoso. Desde 2009, 40 mergulhadoras morreram, incluindo três este ano. As mulheres mais jovens de Jeju, o maior destino turístico da Coreia do Sul, preferem trabalhar nos resorts e lojas de aluguel de carros, do que no mar gelado, como algumas de suas mães e avós ainda costumam fazer.

O número de mulheres do mar caiu para cerca de 4.500, das 26.000 que estavam em atividade nos anos 60, e 84 por cento delas já têm mais de 60 anos.
'A maioria das haenyeo terá desaparecido nos próximos 20 anos, a menos que consigamos mais recrutas', afirmou Yang Hi-bum, uma autoridade do governo de Jeju.

Há muito tempo que as mulheres do mar são uma parte tão importante de Jeju quanto o Monte Halla, a montanha coberta de neve que fica no centro da ilha. Elas vão ao fundo do mar mais de 100 vezes ao dia, capturando criaturas marinhas com as mãos ou, em alguns casos, com uma lança. Voltando à superfície depois de um minuto, elas dão um assobio alto enquanto exalam e colocam o que pegaram em um saco preso a uma boia.

'As haenyeo foram as primeiras mães a trabalhar na Coreia', afirmou Koh Mi, editor do jornal de Jeju, Jemin Ilbo, e participante de um projeto de pesquisa de nove anos com as mulheres do mar. 'Elas eram o símbolo da independência e da força feminina na Coreia'.
Por isso há muita gente se esforçando para preservar sua cultura em vista das mudanças que transformaram Jeju da 'ilha das mulheres do mar', na ilha dos casais em lua de mel em uma questão de décadas.

FOTO: DIVULGAÇÃO / JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES

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Em março, a Coreia do Sul entrou com um processo junto à UNESCO para acrescentar as mulheres do mar na lista de Patrimônios Culturais Intangíveis da Humanidade. Os habitantes da ilha creem que o título traria mais orgulho para a tradição e encorajaria o apoio popular para preservá-la.

Atualmente, a ilha de 1.849 quilômetros quadrados, é tão famosa por suas plantações de cítricos, quanto pelas praias de areia branca, campos de golfe e esplanadas com vista para os penhascos negros onde a lava dos vulcões se encontrou com o mar há milênios. Mas até que as máquinas permitissem que as famílias cultivassem o solo rochoso de Jeju e o turismo trouxesse mais oportunidades de trabalho para a ilha nas últimas décadas, Jeju era um dos lugares mais difíceis de viver na Coreia do Sul, onde as árvores são atrofiadas pelos ventos do mar e aonde os reis enviavam seus inimigos em exílio.
No século XVII, quando os homens iam pescar em alto mar em embarcações de guerra a remo e nunca voltavam, o mergulho se tornou um trabalho feito exclusivamente pelas mulheres, afirmou Kang Kwon-yong, curador do Museu Haenyeo, que pertence ao governo. Um documento do século XVIII registrou que as autoridades açoitavam as mulheres e até seus pais e maridos, quando elas não conseguiam pagar as altas taxas em abalones secos, uma iguaria muito apreciada pela elite coreana, o que forçava as mulheres a mergulhar em águas frias, até mesmo durante a gravidez.
 trabalho sempre foi perigoso. Elas trabalham muitas horas em águas congelantes a até 6,4 metros de profundidade. 
Velhas baladas sobre as haenyeo falam sobre 'mergulhar com o caixão na cabeça', ou sobre 'trabalhar no submundo para que nossas famílias possam viver neste aqui'. As mergulhadoras pedem proteção para a deusa do mar, fazendo ofertas regulares de arroz, frutas e imitações de notas de dinheiro.
Até os anos 60, 21 por cento das mulheres da ilha eram mergulhadoras profissionais e seus produtos correspondiam a 60 por cento da pesca de Jeju. Enquanto as noivas de outras regiões da Coreia do Sul deveriam dar o dote ao marido, em Jeju eram os maridos que pagavam o dote.
'O mergulho garantia o sustento da família toda', afirmou Ku Young-bae, de 63 anos, uma das 270 mulheres do mar de Hado-ri, uma série de vilarejos na costa leste de Jeju, antes de mergulhar em uma tarde recente. 'Os homens são preguiçosos', afirmou. 'Eles não sabem mergulhar. São fracos debaixo da água, onde tudo é uma questão de vida ou morte'.

FOTO: DIVULGAÇÃO / JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES

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Até recentemente, as mulheres do mar de Jeju também trabalhavam no litoral da Coreia do Sul.

'Quando éramos crianças esperávamos que nossas mães voltassem das viagens até o continente', afirmou Lim Baek-yeon, de 53 anos, chefe da cooperativa de mulheres do mar de Hado-ri. 'Isso significava que novas roupas e sapatos estavam chegando'.

As mergulhadoras fazem parte de uma hierarquia muito rígida. As mais jovens ficam longe das águas rasas onde as mulheres mais velhas e fracas mergulham. Quando a escola do vilarejo precisa de reparos, elas doam uma parte do que recebem para a obra.

A independência econômica das mergulhadoras contribuiu para as taxas de divórcio em Jeju, as mais altas da Coreia do Sul. Mas apesar de seu papel essencial, as mergulhadoras não eram vistas com bons olhos por uma sociedade que fechava a cara para mulheres que viajavam para fora de suas ilhas ou que revelassem a pele nua em público. Até que equipamentos que cobrissem o corpo todo fossem criados nos anos 70, elas usavam roupas de algodão artesanais que mostraram a coxa e, muitas vezes, os ombros.

FOTO: DIVULGAÇÃO / JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES

'As crianças de Jeju não gostavam de admitir que suas mães eram haenyeo', afirmou Lee Sun-hwa, membro do Conselho Provincial de Jeju, cuja mãe e avó eram mulheres do mar. 'As mulheres sempre escolhiam seus maridos para serem os chefes dos vilarejos'.
Em parte, elas são vítimas de sua própria labuta. A criação das roupas de mergulho as encorajou a mergulhar mais fundo e por mais tempo, o que levou a uma pesca excessiva e ao declínio da renda e de seu estado de saúde. Os abrigos à beira mar onde elas se encontram antes de entrar na água estão cheios de embalagens vazias de analgésicos e medicamentos para combater o enjoo causado pelo mar.

FOTO: DIVULGAÇÃO / JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES
FOTO: DIVULGAÇÃO / JEAN CHUNG/THE NEW YORK TIMES

Para ajudar a manter a tradição viva, o governo de Jeju financia suas roupas de mergulho e subsidia o seguro saúde e contra acidentes. E também equipa os abrigos com aquecimento e duchas quentes.
As mulheres do mar também estão se autoregulando – criando estações voluntárias de proibição da pesca, zonas onde é proibido mergulhar e limites mensais para o número de dias de mergulho – para que a profissão continue e ser sustentável.
Mas Kim, que criou cinco filhos e pagou a universidade do marido com o mergulho, afirma que será a última haenyeo de sua família.
'Minha única filha nem sabe nadar', afirmou.

(Do The New York Times News Service
Fonte: http://nytsyn.br.msn.com/)

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