Raimundo Isauro, um dos vigias da praia do Campeche – Anderson Coelho/ND
Pescadores do Campeche falam sobre o dia a dia da tradição que virou patrimônio imaterial de SC
ANDRÉA DA LUZ
Com ou sem sol, todos os olhos se voltam para o mar. Pelo menos essa é a rotina entre os pescadores da praia do Campeche, no sul da Ilha de Santa Catarina, que esperam ansiosamente a chegada das tainhas. A prática passada de geração em geração na comunidade, há centenas de anos, foi declarada patrimônio imaterial do Estado em 1º de maio, dia da abertura oficial da pesca artesanal de tainha.
Mas os trabalhos começam no mês de abril, com o conserto das redes e canoas centenárias, feitas com um pau só (garapuvu ou figueira). A safraacontece de maio a julho.
De acordo com Pedro Aparício Inácio, 53 anos, dono do Rancho do Aparício, os peixes mais bonitos costumam chegar entre 20 de maio e 30 de junho. “São as tainhas mais gordas, com ovas. Em julho, elas não se deslocam tanto e, quando chegam, estão mais magras e com pouco sabor”, explica. Segundo ele, o melhor horário para a captura é próximo às cinco da manhã, quando os cardumes estão mais parados, ou depois das 17 horas.
Pedro Aparício Inácio teme pela manutenção da pesca artesanal como tradição – Anderson Coelho/ND
O grupo total de pescadores artesanais no Campeche é de aproximadamente 40 homens. “Mas na hora de puxar a rede, tem cem. Vem gente de todo lado, é ‘a turma da gaivota’ [risos]”. São pessoas da comunidade e até mesmo turistas que ajudam a tirar os peixes do mar. “É bom porque tira a rede mais rápido e a galera ganha peixe também”, diz o pescador e cozinheiro, José Volnei Heerdt, 68 anos.
A agonia da espera
Com redes e canoas prontas, resta aguardar a chegada dos cardumes. “A espera é uma agonia. A gente sai do barracão no fim do dia já pensando no amanhecer do dia seguinte”, diz Volnei.
O cozinheiro José Volnei Heerdt não acredita nas lendas da pesca – Anderson Coelho/ND
A função começa cedo, por volta das cinco da manhã, quando os primeiros pescadores começam a chegar nos ranchos e os vigias ficam a postos, de olho no mar e nas condições do tempo. São quatro ou cinco pessoas, posicionadas em pontos altos e estratégicos da praia, que avisam por celular quando avistam os cardumes.
Para ajudar a passar o tempo enquanto a tainha não vem, o grupo joga partidas de dominó, conversa e se diverte. Mas o clima é de ansiedade. E quando tem peixe, é uma correria danada. A canoa sai com seis pessoas a bordo: “são quatro remeiros, o chumbeiro e o patrão, que é o piloto”, explica Volnei. Se o cardume for muito grande e uma canoa não der conta de cercar, eles põem o outro barco no mar.
Vento sul é bom presságio
“Também dependemos muito do clima, se tiver peixe mas o mar não estiver calmo o suficiente para entrar com a canoa, a gente não pode sair. Precisa ter peixe e mar bom, e ainda assim às vezes a gente conta com a sorte, porque se o cardume passar muito rápido, podemos não ter tempo de lançar as redes e perdemos a captura. Mas a gente não desanima, no outro dia vamos de novo”, conta Adão Siciliano Libair, 66 anos.
Adão Libair vem do Porto da Lagoa para a pesca da tainha no Campeche – Anderson Coelho/ND
Morador do Porto da Lagoa, há três anos Adão se desloca até a praia do Campeche para pescar com a turma do Aparício. “A gente fica na espera, daqui a pouco dá um vento Sul e a gente já fica de prontidão”, afirma.
Adão começou a pescar com dez anos de idade. “Minha primeira tarrafa era feita com castela [concha retirada de uma espécie de molusco] porque eu não tinha condições de comprar os chumbinhos para fazer a rede”, relembra. Mais tarde, pescou em Gravatá e no Rio Grande do Sul, mas acabou se tornando caminhoneiro. Agora, aposentado, voltou a se dedicar à pesca da tainha. “É um passatempo muito gostoso, a gente se mantém em atividade e ainda fica com os amigos”, diz.
Lendas e causos
E as lendas da pesca? Ah, isso é coisa antiga, inventada, garantem os pescadores. “Falavam de uma tal luz que aparecia e sumia nos combros [dunas], dava para ver lá do mar, mas era o pessoal que passava com as pombocas [luz de querosene] subindo e descendo”, conta Volnei. “Era tanta história! Diziam que não podia comer banana que não dava peixe. Mas a gente tomava café com leite, pão e banana bem madura e parece que vinha era mais peixe ainda”.
Volnei conta que certa vez apareceram uns pesquisadores para conferir um sambaqui encontrado na região. “Era lá na casa do seo Manezinho. Eles jogavam cascas de mariscos e ostras atrás de um pé de aroeira, aquilo lá tinha uns 70 anos, da época que se trazia marisco em sacas da Ilha do Campeche, e o pessoal achava que era sambaqui”, diz Volnei.
Pedro lembra que era proibido bater as estivas [madeiras sobre as quais a canoa é empurrada até o mar” ou jogá-las no chão. “Tudo era feito com cuidado, sem barulho, para não espantar os peixes”. Mas tem uma lenda em que ele acredita: são os grandes lanços nos dias de São João e São Pedro (24 e 29 de junho, respectivamente). “No ano passado, pegamos 2 mil tainhas aqui no Campeche no dia de São Pedro, que também é meu aniversário”, comemora.
Futuro incerto
Dá para ver no olhar dos pescadores um certo pesar, quando o assunto é o futuro da tradição. Mesmo sendo um patrimônio cultural, há incertezas sobre o futuro da pesca artesanal como prática regular na comunidade.
Isso porque, além de os ganhos oscilarem muito e de não haver incentivos (os pescadores reclamam, por exemplo, da morosidade para definição das regras, necessidade de revisão das cotas e excesso de burocracia para tirar a carteira de pescador), a maioria dos jovens perdeu o interesse pela atividade.
Nesse aspecto, os entrevistados concordam totalmente. “A gente sabe que não dá mais pra viver só da pesca, mas queremos manter a tradição da nossa comunidade, senão vamos perder a nossa cultura”, diz Pedro Inácio. “A pesca está no nosso sangue, temos muito carinho por essa atividade. Fico triste porque gostaríamos de ter uma pessoa da família que pudesse dar continuidade à tradição”, desabafa.
Para Volnei, que desde criança ia pescar com o pai e dois irmãos, parte da tristeza vai embora quando conta que um dos netos, de 14 anos, gosta da atividade. “Quando ele está de férias, vem comigo aqui para o rancho. Gosta de comer um peixe frito com arroz e pirão e de estar no meio da gente, tem que incentivar”, conta, sorrindo. Mas é fato raro. A grande maioria dos pescadores tem mais de 40 anos.
Ainda há a disputa de ‘terreno’ com a pesca industrial, que dispõe de novas tecnologias para a captura. “Nossos vigias usam celular, mas os barcos grandes já utilizam sonares e drones, que não só mapeiam o local exato como informam até a quantidade estimada de peixes. Isso prejudica a pesca artesanal”, opina Pedro.
E o hábito alimentar sofreu mudanças, também. De prato habitual na mesa dos manezinhos, o peixe passou a raridade nas refeições da juventude. “Os mais antigos comiam muito peixe, de todos os jeitos: em caldos, assados, fritos ou no feijão. Hoje, muitos jovens nem querem experimentar”, afirma Adão.
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