Comunidades caiçaras têm reconhecimento de seu território
Em Ilhabela comunidades caiçaras recebem Termo de Autorização de Uso Sustentável Coletivo
A poética cena do pescador em sua canoa jogando a rede no mar, ainda presente nas cidades litorâneas do Brasil, está cada vez mais ameaçada. A intensa disputa fundiária no país, intensificada nas últimas décadas, e o modo de desenvolvimento capitalista vem pressionando essas populações tradicionais a abandonar seus territórios e a se integrarem ao estilo de vida urbano. São comunidades que mantêm o modelo de vida tradicional, que vivem essencialmente da pesca, do extrativismo e algumas vezes do artesanato, e que possuem uma profunda relação com o meio em que vivem. Ao contrário das comunidades indígenas e quilombolas, que possuem instrumentos de defesa claros em seu benefício, expressos na Constituição Brasileira de 1988, os caiçaras ainda enfrentam dificuldades quanto ao reconhecimento de sua identidade e regularização fundiária dos seus territórios.
É neste contexto que caiçaras do Litoral Norte do Estado de São Paulo obtiveram uma conquista histórica. 265 moradores de comunidades remanescentes da Baía de Castelhanos, que compreende as praias da Figueira, Vermelha, Ribeirão, Saco do Sombrio, Mansa e Canto da Lagoa, e das Ilhas de Vitória, Búzios e Pescadores, em Ilhabela, tiveram reconhecido o seu direito à moradia e ao manejo dos recursos naturais da orla marítima por meio de um instrumento jurídico concedido pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o Termo de Autorização de Uso Sustentável Coletivo (TAUs), em novembro de 2015. São títulos concedidos em área de domínio da União à uma coletividade e que por isso são intransferíveis e inalienáveis, ou seja, os moradores locais não podem vender o terreno, mas têm garantido a segurança da posse tradicional e o direito de permanecer no local de forma regular, garantindo o direito de futuras gerações. A União continua detentora do domínio da área e é a responsável pela fiscalização de seu uso.
“Existe milhões de caiçaras que sonham viver em suas terras sem ameaças. Para nós esse reconhecimento é maravilhoso. Os idosos daqui morreram lutando pela terra. Os mais antigos da nossa comunidade jamais imaginaram que um dia teriam isso que a gente tá tendo, que é a garantia que quando a gente for embora nossos filhos, netos e bisnetos vão poder ficar na terra. Então a comunidade de castelhanos está segurando o TAUs com unhas e dentes”, resume Angélica Souza (foto), líder comunitária da Associação Dos Moradores e Pescadores Artesanais Das Comunidades Tradicionais da Baia Dos Castelhanos (Amor Castelhanos).
Walquíria Imamura Picoli, procuradora do Ministério Público Federal em Caraguatatuba, órgão que realizou o pedido junto à SPU, também comemora a conquista do título: “essa parceria com a SPU é fantástica, porque você usa patrimônio público, que é no caso Federal, para uma finalidade que nossa Constituição prevê, que é proteger as comunidades tradicionais e seus territórios. É uma harmonia de interesses, sempre em prol da Constituição.”
A concessão do título é considerada pioneira no país porque os caiçaras estão ainda numa zona cinzenta dentro da legislação brasileira, não sendo claramente identificados como grupos culturalmente diferenciados, o que dificulta a proteção destas comunidades. “A Constituição Federal prevê a demarcação de terras indígenas e quilombolas. Em relação a outras comunidades tradicionais, por exemplo, aqui no litoral temos o caiçara, em outros locais tem catadores de babaçu, ribeirinhos, e outros tipos, eles não estão explicitamente previstos em nenhum artigo da Constituição, mas também são protegidos por ela”, explica a procuradora.
Na legislação brasileira, a primeira fase para o reconhecimento de qualquer grupo desta natureza é a autoidentificação, seguindo os parâmetros da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário. A Convenção, de 1989, é o instrumento internacional vinculante mais antigo sobre o tema.
A conquista é fruto da organização e resistência dos caiçaras de Ilhabela e de um trabalho conjunto de diversos setores do poder público. Para tanto, houve um extenso processo de identificação dos terrenos de propriedade da União iniciado em 2013. Na época, o Ministério Público Federal e Estadual entraram em contato com a SPU ao receberem queixas dos moradores quanto a possíveis avanços de empreendimentos imobiliários e eventuais alterações no Zoneamento Ecológico Econômico do Litoral Norte, que possibilitaria a urbanização da área. Os caiçaras também corriam o risco de serem retirados das suas terras, devido a processos judiciais de reintegração de posse movidos por particulares que haviam adquirido títulos possessórios de terrenos próximos às praias.
A prefeitura de Ilhabela contribuiu fornecendo plantas e cadastros do local e, por fim, o Instituto Socioambiental Guapuruvu realizou ainda um extenso mapeamento antropológico da região entre 2014 e 2016 que serviu de argumentação para a ação proposta pelo MPF. Procurada, a SPU afirmou que a pasta já vem atuando na redução de conflitos ligados à terra, no controle da especulação imobiliária, ordenação do uso racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis, criando assim “precedentes e modelos de atuação a serem aproveitados em outras comunidades”.
Embora os comunitários tenham tido a notícia da conquista do TAUS em novembro do ano passado, eles ainda aguardam com ansiedade o recebimento do título em mãos. No evento em 2015 foi iniciada a coleda das assinaturas dos beneficiários dos títulos coletivos, mas a SPU não soube explicar porque eles ainda não receberam e não deram previsão e quando será publicado no Diário Oficial da União.
Área de intenso conflito
A importância do título para a comunidade da Baía de Castelhanos é ainda maior se considerarmos o tamanho do conflito fundiário presente na região entre o Canto da Lagoa e Canto do Ribeirão por conta da pressão imobiliária decorrente do grande atrativo turístico do local, composto por paisagens naturais cinematográficas que combinam diversas praias, cachoeiras, trilhas e sítios arqueológicos.
Essa pressão foi sentida ainda mais forte pela líder comunitária Angélica de Souza, após a notícia do TAUS. Ela conta que desde então mudou a relação entre veranistas e moradores. “A partir do momento que o caiçara foi entendendo os direitos deles isso desagradou os veranistas porque seus interesses foram questionados”, opina a líder. Isso porque, se antes alguns dos comunitários trabalhavam como caseiros nas casas de veranistas em busca de melhor renda, agora eles têm um estímulo a mais para manter-se nas práticas tradicionais, além do fato de que algumas casas de veraneio estão em áreas da União e que devem ser destinadas para uso da comunidade. Mesmo assim a líder comunitária afirma sentir-se mais tranquila com o TAUS. “A gente tem uma segurança maior de quem não vem gente de fora construir, que a gente é dono da terra.”
Também disputam interesses a comunidade, presente no território há mais de 200 anos, e o Parque Estadual de Ilhabela, unidade de conservação de proteção integral criada em 1977 e gerida pela Fundação Florestal. Embora os direitos das comunidades tenham sido recentemente reconhecidos pelo Plano de Manejo das áreas do parque, esta discussão é tão central em áreas de sobreposição entre unidade de conservação e comunidades tradicionais em todo o país, como nas Ilhas de Vitória, Búzios e Pescadores, ou de proximidade de um e outro, como é o caso de Castelhanos, que o próprio poder público incorporou a discussão.
As TAUS dos territórios caiçaras são inéditas também por promover o reconhecimento dos territórios caiçaras situados dentro do Parque Estadual de Ilhabela (caso das ilhas) e em seu entorno (baia de castelhanos). A texto do titulo foi acordado entre SPU e a Gestora da Unidade de Conservação, dando efetividade ao Plano de Manejo que reconheceu as comunidades caiçaras em seu zoneamento. Esta experiência deve servir de referencia para outros casos de sobreposição entre UCs de Proteção Integral e territórios de povos e comunidades tradicionais, apontando como garantir a regularização fundiária das comunidades e a compatibilização de usos sustentáveis dos recursos naturais.
O MPF em Caraguatatuba possui duas câmaras para debater o tema, a Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural e a das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais. A procuradora da República entrevistada conta que, há alguns anos, o que ocorria é que a “acabavam criminalizando a comunidade”. Hoje ela afirma que os órgãos de cúpula do MPF conseguiram se harmonizar ao entrarem num entendimento de que é possível a preservação do meio ambiente com a existência das comunidades tradicionais. Isso porque, segundo ela, “tem-se observado uma relação de causa e efeito, ou seja, onde existem estas comunidades o local fica preservado”. Por isso, segundo Picoli, o MPF vem atuando em casos como este no sentido de “regularizar os usos e não retirar as comunidades daqueles locais”, como ocorreu em Ilhabela.
Um impasse atual na região acontece em relação às regras de uso de material vegetal da unidade de conservação. Os pescadores reclamam que não têm permissão para extrair madeira para a confecção de suas canoas. Principal instrumento de trabalho dos comunitários, a arte de esculpir canoas é central na cultura deles e passada de geração para geração, garantindo o sustento da comunidade. As madeiras utilizadas são de ingá, coabi, cedro e cobirana. “Madeiras boas, que garantem embarcações de mais de 40 anos”, conta o pescador artesanal Áureo Rafael de Souza, 42 anos, morador de Castelhanos.
Questionado a esse respeito, o Parque Estadual informou por meio de sua assessoria que “as comunidades da Praia dos Castelhanos não estão sobrepostas à área de Parque, mas sim, em Zona de Amortecimento, onde não incidem as restrições de uso da Unidade de Conservação de Proteção Integral”. Zona de Amortecimento são áreas definidas no entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas às normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos ambientais negativos sobre a unidade, definida por seu Plano de Manejo. Já nas áreas de proteção integral, mais distantes das comunidades, “valem as regras gerais de Proteção Integral, que não permitem a extração de vegetação nativa”, conforme explica a Fundação Florestal.
Isso significa que os moradores da Baia de Castelhanos estão inseridos num contexto com três áreas de uso distintas. A faixa de areia, de posse da União, é a que incide o TAUs e que eles têm seu uso regulamentado, garantindo a atividade pesqueira. Já no interior, onde moram e fazem plantio para a subsistência, é área de amortecimento, o que faz com que suas atividades extrativistas estejam sujeitas às regras do Parque. E, por fim, a área de proteção integral, voltada exclusivamente para a conservação. “As leis que foram aplicadas após o parque prejudica a cultura do caiçara, que precisa do barco para pescar”, reclama a líder comunitária de AMOR Castelhanos.
As restrições de uso dos recursos naturais são intensas no interior do parque e menos restritivas na área de amortecimento. No entanto, em se tratando de uso tradicional dos recursos naturais para a garantia da identidade e modo de vida caiçara, deve haver uma pactuação do uso do território entre comunidade e Parque de forma que ambos os direitos sejam garantidos – os direitos relacionados ao patrimônio cultural, trabalho e manutenção do modo de vida da comunidade e a conservação da natureza.
Ela explica que por conta do impedimento estão comprando canoas de fora. “Como o TAUs é de geração para geração, essa canoa aqui também é. Os canoeiros que fazem essa canoa já estão ficando velhos, então eles têm que deixar essa tradição pros próximos, esta tradição não pode acabar”, defende. “Uma canoa desse porte aqui não é qualquer pessoa que faz. O caiçara que vai pro mato tem consciência que isso aqui é para trazer a renda para a casa dele. O verdadeiro caiçara preserva o lugar que mora”, defende ainda o pescador artesanal Marcelino de Souza, morador da Praia Mansa.
Ser caiçara
Segundo relatório do Instituto Guapuruvu, diferentemente dos grupos caiçaras que viveram na costa do litoral paulista, e nas décadas de 1970 e 1980 foram dissolvidos em função da urbanização da costa, valorização e perda de suas terras para o mercado imobiliário, os moradores da Baía dos Castelhanos representam uma força de resistência. Conscientes de seus direitos de permanência na terra e interessados em manter a tradicionalidade e modo de vida, vêm num crescente de organização, esclarecimento e luta sobre seus direitos. Demonstram orgulho de ser caiçaras e valorizam o lugar onde vivem.
As famílias que persistiram em permanecer no local se voltaram exclusivamente para a pesca e agricultura de subsistência, período conhecido como da “bravura caiçara”, pois embora as condições de vida não fossem fáceis, havia fartura de alimentos, saúde e o conhecimento que adquiriram pela vivência com a natureza, o que lhes proporcionava segurança alimentar e uma estabilidade razoável para a vida familiar.
Atualmente organizada em torno das famílias de pescadores artesanais, a comunidade de Castelhanos expressa um modo de vida peculiar, marcado pela tradicionalidade herdada dos antigos. A forte relação com o mar e a terra, o consórcio de atividades de extrativismo, pesca, agricultura, artesanato e comércio, marcam as práticas de vida desse grupo tradicional, que vive essencialmente da pesca, em seguida do artesanato produzido com os recursos naturais do local e a venda da farinha de mandioca, alimento principal na mesa e nas roças dos moradores.
O turismo ainda é pouco explorado pelos locais e está concentrado no lado sul da baía (o lado norte, marcado pela presença do rio Ribeirão do Engenho que atravessa a planície e corre paralelo ao mar formando extensa área de restinga alagada e manguezal, permanece sem ocupação e bastante preservado).
Segundo relatório do Instituto Guapuruvu, há somente dois restaurantes que seus donos são parentes de pessoas nascidas na Praia de Castelhanos e um camping de propriedade de família caiçara. Perguntada se há uma intenção de receptivo por parte dos caiçaras para um turismo de base comunitária, importante fonte de renda em algumas comunidades tradicionais do litoral norte, a líder comunitária de Castelhanos informa que não há nenhum planejamento neste sentido e que a busca deles no momento é se consolidar no território exercendo suas práticas tradicionais. Outros moradores entrevistados se mostraram inclusive receosos com a aproximação de “pessoas de fora”.
É o que vemos na fala de Almir Rafael de Souza, 43 anos, pescador e morador da Praia Vermelha. Ele conta que nos últimos cinco anos aumentou muito o número de não nativos. Segundo ele, são grileiros e veranistas interessados em especular com a terra, além de pessoas que vêm para trabalhar com o turismo. Ele acredita que isso enfraquece a comunidade e causa muitos conflitos, pois são pessoas que têm costumes muito diferentes dos deles. “A gente não se sente em casa, se sente invadido”, revela. Um dos problemas que ele aponta é a introdução de bebidas alcoólicas e drogas na comunidade. “O caiçara não tem esse costume de droga. O caiçara é certinho. É só ele, o mar, a terra e a família. O pessoal de fora traz muitas coisas que não favorece a comunidade”, reclama.
Ainda sobre as diferenças culturais sentidas pela comunidade com as pessoas de fora, a mãe do pescador, Leopoldina Rafael de Souza, 66 anos, conta que até vai para São Sebastião com frequência, mas que não gostaria de morar lá. Ela acha que as pessoas na cidade não se comunicam e que é muito insegura a vida nos centros urbanos. “Aqui na comunidade a gente dorme de porta aberta, não têm medo de nada”, compara.
Ainda sobre o modo de vida da comunidade, o estudo do Instituto Guapuruvu descreve que as praias são importantes espaços de encontro das famílias caiçaras. São espaços comuns que todos frequentam e conversam sobre as pescarias e assuntos gerais, as crianças se encontram para brincar. A faixa de areia é o local onde os pescadores estendem suas redes para secá-las e limpá-las e trabalham na manutenção das embarcações.
E onde estão construídos os ranchos para guardar as canoas. Os ranchos são tradicionalmente de propriedade familiar, sendo seu uso em geral compartilhado por membros de uma mesma família. Atualmente há três escolas na Baía, uma na Praia Mansa, outra no Ribeirão e outra no Canto da Lagoa. A maioria deles ainda depende de geradores para uso de energia elétrica. Somente as casas da Praia Mansa possuem energia solar que, segundo eles, dá para ligar poucas lâmpadas, não sendo capaz de manter geladeiras ligadas. No dia da visita da reportagem estavam inaugurando e uma câmara fria, instalada por meio do programa de apoio a pesca – condicionante ambiental da Petrobras devida pela implantação da Plataforma de Gás de Mexilhão, que irá auxiliá-los no armazenamento dos pescados e da merenda escolar.
Texto e fotos: Carolina Lopes, repórter do Observatório no Litoral Norte
Edição: Bianca Pyl, equipe de Comunicação do Observatório
Colaboração: Patrícia de Menezes Cardoso, coordenadora de grandes empreendimentos do Observatório
(Do http://litoralsustentavel.org.br/)
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