quarta-feira, 29 de outubro de 2014

MAR DE ILHAS

Alcatrazes esbanja beleza.

Arquipélago de Alcatrazes

Publicado por João Lara Mesquita 

Em setembro passado fiz uma viagem para Alcatrazes, litoral Norte de São Paulo, com objetivo de gerar mais um programa para a série Mar Sem Fim exibida pela TV Cultura aos domingos às 19 horas (reprise sábados, 8h30). Tivemos que voltar antes de terminar em razão da entrada de uma frente fria. Retornamos semana passada e concluímos o programa.

História antiga
O arquipélago é um dos mais bonitos e ricos da costa brasileira. E tem uma sina estranha e sinistra: o fogo. Desde que foi avistado pela primeira vez, em 1531, na quarta viagem que os portugueses fizeram ao Brasil, os incêndios não deixam Alcatrazes em paz.

Esta viagem comandada por Martim Afonso de Souza tornou-se célebre por vários motivos. Um deles é que o Diário de Navegação, escrito pelo irmão do comandante, Pero Lopes de Souza, resistiu ao tempo; sobreviveu ao terremoto de Lisboa no século XVIII e posterior maremoto seguido por incêndios que destruíram grande parte dos documentos da época das grandes navegações, e até hoje pode ser encontrado em bibliotecas especializadas.

Tenho comigo uma cópia que nunca deixo de reler.

Os Diários eram parte da estratégia lusa. Em todas as viagens havia alguém relatando milha a milha tudo que acontecia a bordo.
A frota de Martim Afonso descia a costa brasileira em direção ao Rio da Prata, com paradas em vários locais. No sudeste os escolhidos foram Ilhabela, Alcatrazes e Cananéia.

Depois de deixarem Ilhabela e navegarem para o sul Pero Lopes conta que a nau capitânia, debaixo de forte cerração, “quase deu o com o gurupés nas pedras (de Alcatrazes). Em seguida informa que desembarcaram e “mataram tantos rabobifurcados (alcatrazes, a ave) “que carregamos o batel deles”. Por último, para reunir a frota que estava dispersa, Pero Lopes escreve: “tornei a ilha a por lhe fogo”.

Os “raobifurcados” ou Fragatas, que fazem da ilha seu ninhal.

História moderna

A sina de Alcatrazes, iniciada no século XVI, foi retomada nos anos 80 do século passado quando a Marinha do Brasil escolheu a ilha como alvo para tiros de canhão provocando vários incêndios. Só que desta vez havia quem não gostasse. Um tipo novo de cidadão havia surgido. Os “ambientalistas”, entre eles Fausto Pires de Campos, da Fundação Florestal de São Paulo que, junto com outros, iniciou uma batalha pelo fim dos ‘exercícios’ e a transformação do arquipélago em Parque Nacional Marinho.

Consequências do tiros, anos 80.

Foi o início de uma longa disputa. Entre um tiro e outro os ambientalistas trabalhavam na transformação da área em Parque Nacional Marinho. Um dos lances importantes aconteceu em 1987 com a criação da Unidade de Conservação federal ESEC Tupinambás que engloba quase todas as ilhas do arquipélago (Ilha do Paredão, a Laje de mesmo nome, a Ilha da Sapata e a do Oratório, o Parcel de Nordeste, e ainda mais duas Lajes: a do Pescador, e a da Gaivota) e mais duas próximas a Ilha Anchieta, em Ubatuba.
Enquanto isto a ilha principal, e mais importante, continuava fora da unidade sendo bombardeada com frequência.

Adesão a ideia do Parque

O movimento cresceu. Pessoas com prestígio no meio ambiental como Judith Cortesão, a jornalista Priscila Siqueira, o fotógrafo Antonio Carlos D’ Ávila, e outros, se engajaram. Começou a pressão da opinião pública. Matérias na imprensa, editoriais e cartas –abertas foram feitas.

Kelen Leite, analista ambiental do ICMBio, teve papel importante durante todo este processo, especialmente depois de assumir a chefia da ESEC Tupinambás em 2010. Ela conta que o primeiro processo encaminhado ao ICMBio, ainda nos anos 80, teve boa recepção por parte do diretor Raimundo Melo.

“A grande dificuldade para a criação de uma nova UC é o setor econômico ou a população afetada” explica Kelen. No caso de Alcatrazes moradores e prefeitos de São Sebastião e Ilhabela se manifestaram a favor da mudança, e até uma carta do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, foi anexada ao processo. Os únicos a resistir foram os pescadores que por fim concordaram “desde que não se aumentasse a restrição à pesca” (em algumas UCs as áreas contíguas são vetadas à pesca).

Fausto Pires de Campos anilhando filhote de Atobá.

Situação atual
Demorou mas deu certo. Faz um ano que a Marinha do Brasil desistiu dos tiros. Durante todos este tempo Alcatrazes esteve “fechada ao público”, isto é, aos barcos privados que só podiam alcança-la com autorização da força naval.

Mas agora que a restrição caiu, o perigo aumentou.

O ICMBio passou a ter nova direção, Ricardo Valentim que, ao assumir, promoveu mudanças em cargos de segundo e terceiro escalão.

Kelen Leite foi afastada da chefia da ESEC Tupinambás. Perguntei o motivo. “Não houve justificativa. Recebi um e mail no final de 2013 falando em mudanças de diretrizes e gestão.”
Não sabe como o processo de mudança é visto atualmente.

A quantidade de aves é impressionante
Para Kelen é preciso agir rápido: “só na região de São Sebastião há 25 mil embarcações registradas”.

“É preciso algum tipo de controle. Alcatrazes abriga 150 tipos de peixes sendo que 50 estão sob algum tipo de ameaça”. Mais importante que a quantidade de espécies é o fato que no litoral paulista há apenas duas ilhas “que têm papel importante na reposição dos estoques: a Laje de Santos, e Alcatrazes.”
E não é só. O arquipélago é o maior ninhal de aves marinhas do litoral Sudeste, e ponto de parada de muitas outras.
Fragata no ninho.

Além disto a ilha principal abriga diversos tipos endêmicos entre anfíbios, um tipo diferente de jararaca, e espécies da flora, entre elas uma linda orquídea cujo nome me fascinou: Rainha do Abismo, por nascer nos enormes paredões de granito que formam Alcatrazes.

Ruínas da antiga casa de faroleiro em Alcatrazes.
Não há contestação, seja entre ambientalistas, seja entre pesquisadores. Chegou a hora de Alcatrazes finalmente ter a paz que merece e, sua beleza selvagem e grande biodiversidade, franqueada à todos. Não há outro caminho que não passe por sua transformação em Parque Nacional Marinho.
Por sua beleza e biodiversidade Alcatrazes merece ser nosso próximo Parque Nacional Marinho.

(Do https://www.facebook.com/marsemfim)

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