sexta-feira, 12 de junho de 2020

COM OU SEM OVAS?


Fotos Leandro Dalla Santa




A PRIMEIRA TAINHA.....

"Sim, parecia mentira o que meus ouvidos acabavam de escutar de algum lugar lá fora: "TAINHA, TAINHA", mas foi o suficiente pra que eu olhasse com atenção pela janela até avistar um sujeito empurrando uma bicicleta e, na caixa da frente, amontoados, alguns peixes tão bem conhecidos dos meus tempos de Floripa.

Nessa parte do litoral norte do Estado do Rio de Janeiro, aqui na Lagoa de Araruama, sempre soube da existência das cabeçudas e em alguns momentos as encontrei para vender no Mercado de Peixes, mas agora, nesses tempos de pandemia em que não saímos quase nunca, logo me lembrei do ditado da montanha e de Maomé, e saí correndo escada a baixo em direção a rua, alcançando o cidadão já na outra esquina, mas ainda com uma boa carga de peixes, "com e sem ovas" na explicação dele. 
"E são as melhores essas, que vêm lá dos lados do Canal (aqui, Canal do Itajurú, que liga o mar à Lagoa de Araruama, serpenteando pelo meio de Cabo Frio), pescadas com ganchos". Bom, até perguntei o porque de serem melhores essas em relação às outras, e a resposta foi a mesma "que vem lá dos lados do Canal", e quando perguntei sobre o que era pesca de gancho, arriscou um desenho no chão pouco compreensível para um leigo e muito menos ainda para um mau desenhista.

Remexeu um pouco na caixa e, claro, me mostrou a maior de todas, a mais bonita entre as bonitas que, suja, pesou um pouquinho mais de dois quilos e exatos 34 Reais. Uma boa compra, mas com um problema, que meus dotes culinários se restringem a comer peixe, não necessariamente a limpar e preparar peixe. 
Mas foi no impulso que saí a cata da iguaria e seria no impulso que teria que encontrar a solução. Ele até tirou as barbatanas e nadadeiras com uma faca quase imprestável primeiro, e depois as escamas com um tipo de escova de madeira e com pregos em lugar de cerdas. Precariedade por precariedade, agora só faltava limpar a belezuda, temperar e assar.

Lembro que anos atrás, diante de uma tainha como essa, suja, até que não me saí tão mal na tentativa de governá-la (ainda se fala assim?), mas agora, sozinho e contando só com as recomendações do vendedor, fiquei na dúvida se conseguiria fazer o serviço sem destruir o bem mais precioso que estava ali escondido: as ovas.

Com uma faca de ponta bem afiada (deixo isso como força de expressão, que bem afiada é quase uma mentira descarada) comecei a abrir da barriga em direção a cabeça sem afundar muito a lâmina, isso até com uma certa facilidade, mas ao final percebi que havia cortado uma das ovas e saia uma gosma alaranjada de dentro, o que quase me fez desistir do peixe todo (também força de expressão que, pelos 34 reais, tinha que aproveitar era tudo). Nada tão grave, que essa ova virou uma boa farofinha para ser degustada junto. Mas seguindo, até que não foi tão difícil fazer a limpeza dos miúdos todos, mas antes de temperar com sal e com velho limão de peixe aqui do vizinho, fui medir a improvisada churrasqueira para ver se ambos eram compatíveis. E pior é que não.
Em nova operação com a mesma excelente faca de ponta, promovi uma decapitação sem medo nem dó, quase cirúrgica, que deixou meu peixe dentro dos padrões exigidos (mexer na churrasqueira dava mais trabalho).
Com isso, sal, limão e fogo de lenha. E tempo, muito tempo, nada mais que isso para garantir um sabor mais apurado e uma suculência incomparável. Dito isso acho que, sim, posso me dar por satisfeito por esse rico e improvável manjar nestas terras distantes e nesses tempos negros de pandemia. E para o ano está bom, que o que gosto mesmo é de anchovas. 

QUE VENHAM AS ANCHOVAS!"

(Do Leandro Dalla Santa, "gauncho" com estágio em Floripa, morando no Rio)

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