domingo, 24 de maio de 2020

TAINHA CRÔNICA


Foto Andrea Ramos
As ovas e o Mercado
"Tagenias. Ou, em grego arcaico, bom para frigir. Principalmente as ovas douradas. Aos poucos, o corpo prateado, de listras escuras no dorso, começa a frequentar as bancas do Mercado, exposto e empilhado como numa morgue da boa gastronomia. Quando deparo com uma “tagenias”, sinto vontade de repetir o ritual de minha avó. Aperto o peito oliváceo de uma delas, duplamente ovada, a boca semiaberta no último esgar da morte. 
Quase levo um susto quando a tainha pisca um olho pra mim, como quem seduz: – Me leva! Sou gostosa, assada ou frita! Aliás, meu nome diz que sou boa para fritar, mas também para ser tostada num braseiro. E às minhas ovas, então, quem resiste? Elas humilham até o caviar... Fritas. As ovas e as postas.
 É como gosto de comê-las, umas como aperitivo. Outras como peixe nobre, embora um tanto gorduroso. Ovas de tainha são “prêmios”, especiarias inigualadas por qualquer outro fruto do mar, aí incluídas as outras espécies de fina estirpe, como as de esturjão, muito salgadas, transformadas em caviar. 
Entre as ovas da nossa tainha mané, que vêm ali da Lagoa dos Patos, e as ovas dos esturjões do Báltico, meu palato é mané e não abre – ou, por outra, a única coisa que abre é a boca, pra comer mais. Pelas manhãs do Mercado Público evolam-se cheiros da Provence, terra que trata os prazeres da mesa, do prato e do copo com a devoção digna de um sacramento. Todo o sul da França é considerado um “mercado ao ar livre”, o próprio ar recende a orégano, alecrim, funcho, alfazema e tantas especiarias herbáceas que qualquer “matinho” tanto pode esconder um mero jardim quanto um fornido guarda-comida. 
Nosso Mercado deveria zelar por esses cheiros e por esse colorido provençal. Tomara que, a pretexto de organizar um novo mix, e de promover uma democracia licitatória, não acabem estragando o que já está bom. E que não encontremos ali, no futuro, algo antinatural, como alguma filial de muambas do Paraguai. 
Boxes que não se destinem à natural vocação da velha casa amarela: ser um tabuleiro de legumes, verduras, frutas, peixes, carnes, víveres, bistrôs para se viver a vida, consumindo umas e “ostras”. Neste outono que se desenha promissor à temporada das tainhas ovadas, vale a pena extrair de um romance de mestre Eça de Queirós – A Ilustre Casa de Ramires – uma receita de tainha bem assada: 
“Aqui está como se prepara, ó estudiosos! Tomai uma tainha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida com queijo (que pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa tainha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida, assai-a num lume forte. Logo depois de bem passada e alourada, umedecei-a com vinagre superfino. Servi – e louvai Netuno, deus dos peixes...” 
Essa ova “manufaturada” por Eça perde para as nossas ovas naturais, gêmeas, geradas no ventre das nossas tainhas manés. Mas – vinda de quem vem – não custa nada reconhecer que a receita tem lá o seu estilo..."

SÉRGIO DA COSTA RAMOS

(Crônica publicada na edição de 6/4/11, no Diário Catarinense)

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