Foto Fernando Alexandre
"Olho a tainha cara a cara, numa banca de peixe do Mercado. Ela pisca um olho e produz um sorriso escamado, quase um esgar. Parece querer sussurrar alguma coisa. Chego mais perto. E a tainha fala: – Cheguei de caminhão. Não sou tão fresquinha assim... Eu, que já me preparava para examinar-lhe as guelras, apalpar-lhe a barriga, avaliar-lhe as ovas, chego à conclusão de que ainda é cedo para comprar tainha, melhor esperar o primeiro lance.
Pelas manhãs do Mercado Público evolam-se cheiros da Provence, terra que trata os prazeres da mesa, do prato e do copo com a devoção digna de um sacramento. Todo o sul da França é considerado um “mercado ao ar livre”, o próprio ar recende a orégano, alecrim, funcho e alfazema. Nosso Mercado deveria zelar por esses cheiros e por esse colorido provençal. Tomara que, a pretexto de organizar um novo mix e de promover uma democracia licitatória, não acabem estragando o que já está bom.
E que não encontremos ali, no futuro, algo antinatural, como alguma filial de muambas do Paraguai. Boxes que não se destinem à natural vocação da velha casa amarela: tabuleiros de legumes, verduras, frutas, peixes, carnes, víveres, bistrôs para se viver a vida, consumindo umas e “ostras”.
Neste outono que se desenha promissor à temporada das tainhas ovadas, mas que ainda não “inaugurou” a primeira rede premiada, vale a pena repetir a sugestão de mestre Eça de Queirós – colhida da Ilustre Casa de Ramires – uma receita de tainha bem assada: “Aqui está como se prepara, ó estudiosos! Tomai uma tainha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida com queijo (que pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa tainha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida, assai-a num lume forte. Logo depois de bem passada e alourada, umedecei-a com vinagre superfino. Servi – e louvai Netuno, deus dos peixes...”
Essa ova “manufaturada” por Eça perde para as nossas ovas naturais, gêmeas, geradas no ventre das nossas tainhas Manés. Mas – vinda de quem vem – não custa nada reconhecer que a receita tem lá o seu estilo... Vejo minha avó espremendo a barriga das tainhas, examinando as ovas, regateando o preço. Sinto o cheiro das ovas fritas e a boca “embuchada” pela ingestão de duas grandes rodelas. Quando deparo com uma “tagenias”, ou “boa para fritar”, do grego antigo, sinto vontade de repetir o ritual de minha avó. Aperto o peito oliváceo de uma delas, duplamente ovada, a boca semiaberta na última careta da morte. São raros, hoje, os cardumes que chegam à costa, observados pelo olhar vigilante do olheiro, acocorado numa pedra, palheiro nos lábios, olho de lince.
As tainhas chegam do Rio Grande, pescadas ainda miúdas na garganta da Lagoa dos Patos, antes que ganhem o oceano, o “mar alto”. Chegam à Ilha catarina de “carona” num caminhão-frigorífico, depois de quase uma dezena de dias na câmara fria. Quando são empilhadas nos tabuleiros do Mercado, sua “expressão” já conduz o freguês à desconfiança da “sensaboria”.
Tainha que é tainha não vem de geladeira. Mas da rede puxada nos Ingleses, em Canasvieiras, na Armação. Melancólica, a tainha ainda tenta me seduzir: – Me leva! Sou gostosa, assada ou frita! Aliás, meu nome diz que sou boa para fritar, mas também para ser tostada num braseiro. E às minhas ovas, então, quem resiste? Elas humilham até o caviar... Fritas. As ovas e as postas. Terei que adiar o momento de voltar a degustar essa iguaria?
Ovas de tainha são “prêmios”, especiarias inigualadas por qualquer outro fruto do mar, aí incluídas outras espécies de fina estirpe, como as de esturjão, muito salgadas, transformadas em caviar. Entre as ovas da nossa tainha mané e as ovas dos esturjões do Báltico, meu palato é mané e não abre – ou, por outra, a única coisa que abre é a boca. Pra comer mais."
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