O porto de Lisboa, gravura de Theodore de Bry. 1595.
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O mundo de 1500 estava sedento por descobertas. Depois do torpor dos dez séculos da ‘era das Trevas‘, o povo queria novidades. Havia dois anos, 1498, que o caminho fora ‘aberto’; a Europa, finalmente conectada com o Oriente, marcou o início do que conhecemos como globalização. Lisboa passa a ser o centro do mundo civilizado. No mesmo período, as caravelas lusasarribaram em Porto Seguro. Não deu outra. A porção de terra que nos abriga virou coqueluche. Três anos depois, chegava o primeiro penetra na festa dos trópicos, o francês Binot Paulmier de Gonneville. O normando armara o navio, ‘l´Espoir de Honfleur (1503 – 1505)‘, para comerciar diretamente nas Índias. Neste período o Brasil atraía piratas aos magotes.
Mau tempo no Cabo da Boa Esperança
Gonneville enfrentou tanto mau tempo que não conseguiu atravessar o Cabo da Boa Esperança. Obrigado a dar meia volta, resolveu xeretar a costa recém “descoberta”. Em 5 de janeiro de 1504 veio dar na baía de Babitonga, onde hoje fica São Francisco do Sul, litoral norte de Santa Catarina. Ali, no bem bom, ao lado dos moradores nativos, os Carijós, os normandos sararam sua feridas. Ficaram amigos dos índios. Devem ter vivido uma bela farra. Na volta, quase um ano depois, Gonneville abarrotou o porão de seu navio de pau- brasil, aves e animais e, não satisfeito, levou também o pequeno Iça- Mirim, filho do cacique carijó, Arosca. Que cabeça tinha o garoto, não? De uma hora pra outra, sair do estado selvagem e partir para a França, é uma aventura ainda maior do que a de quem veio! O rapaz era ainda pequeno, foi acompanhado de um índio adulto, de nome Namoa.
Vinte Luas
O combinado entre Gonneville e Arosca era devolvê-lo em 20 luas. Mas a viagem de volta foi o cão. Alguns tripulantes morreram, entre eles Namoa. Iça- Mirim também adoeceu. Ficou num estado tão lastimável que Gonneville resolveu batizá-lo a bordo, para que não morresse pagão. Ele se esforçou o máximo que pode, mas não conseguiu pronunciar Iça- Mirim. Nosso herói se tornou uma corruptela: Essomeriq. Ao se aproximar da costa da França, o navio foi atacado por um corsário inglês que roubou tudo que os navegadores trouxeram de terra. Inclusive, e mais importante, o diário da expedição. Em sua chegada a Honfleur, DeGonneville imediatamente fez uma queixa diante do Tribunal do Almirantado da Normandia e escreveu um relatório de sua viagem. Vem deste texto as histórias que agora relembramos.
Essomeriq: da Babitonga para a corte
Conta a história que, não conseguindo trazê-lo de volta, Gonneville empresta seu nome à Essomeriq, mais tarde casou-o com a filha (outras fontes dizem sobrinha), Suzanne. Ao morrer, lega ao carijó parte de suas posses, desde que ele e seus descendentes usassem seu nome e suas armas. Conta a história que ‘Essomericq teve 14 filhos, ele viveu 95 anos no verde da Normandia’.
Descendente de Essomeriq no Brasil?
Essa história sempre me fascinou. Ficava imaginando a cabeça do indiozinho que topou subir naquela ‘nave’ parada em sua baía. E de lá navegar para a Normandia em 1505! Como terá sido o primeiro encontro na corte? O que terá passado na cabeça de nosso herói? E como terá sido sua vida, já que descendentes nos dizem que morreu aos 95 anos, com 14 filhos?
Miniuatura do l’espoir, Museu do Mar, São Francisco do Sul.
No início desta Primavera, a Folha de S. Paulo respondeu. O jornal publicou matéria contando da visita que nos fazia a francesa, Dorothée de Linares, 45, que se dizia descendente de Essomeriq. Dorothée veio conhecer a região, fascinada pela história que diz ouvir desde sempre, para transformá-la num livro infantil. Para tanto mantém um site que agora contatamos.
Thomas Cavendish, terceiro a dar a volta ao mundo
Gonneville não foi o único pirata protagonista do século 16. Dezenas de piratas vieram, entre eles outro notável, o navegador e pirata inglês, Sir Thomas Cavendish, terceiro a dar a volta ao mundo (1586). Numa segunda circunavegação, partiu de Plymouth em 26 de agosto de 1591 com cinco navios. A rota natural do Hemisfério Norte costeava o litoral do Brasil. Nessa viagem, Cavendish infernizou o País. Atacou diversas vezes. Incendiou construções de Ilha Grande, aprisionou navios, fundeou em Ilhabela, de onde ordenou a destruição de Santos e São Vicente. Azucrinou. Quem conta é o tripulante…
Mapa da época de Cavendish.
Antony Knivet, em ‘As Incríveis Aventuras E Estranhos Infortúnios de Antony Knivet’
Este livro trata das “memórias do aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens.” Knivet com a palavra: “De tarde, após incendiarmos mais um navio e queimarmos todas as casas (de Ilha Grande, RJ), partimos de lá. Como o vento era bom, mais ou menos às seis horas chegamos à ilha de São Sebastião (Ilhabela), a cinco léguas de Santos, onde ancoramos. Uma vez no porto todos os Capitães e pilotos embarcaram no navio de capitão- mor para saber como pretendia tomar a cidade de Santos.”
O ataque a Santos
“Todos decidiram que nosso barco longo e nossa chalupa com somente cem homens eram suficientes…Knivet: “O piloto português (que haviam capturado em Cabo Frio) contou- nos que aquele era o momento. Pelo tocar do sino estariam no meio da missa. Desembarcamos e marchamos até a igreja, onde tomamos todas as espadas sem resistência.” Havia cerca de 300 homens e mulheres na igreja (era comemorada a Missa do Galo), além de crianças.
Casa do Trem e ao fundo a antiga capela de Santa Catarina, ali reconstruída após o ataque de Cavendish. Aquarela de Benedito Calixto.
O saque a Santos e a destruição de São Vicente
“No dia seguinte o capitão-mor veio com todos os barcos para a barra e logo desembarcou 200 piratas aos quais ordenou que queimassem toda a parte de fora da vila. Então deu ordem para que ateassem fogo em todos os navios ancorados no porto. Permanecemos dois meses em Santos, carregamos nosso navio com açúcar e mercadorias dos navios portugueses que estavam no porto.” A crônica diz que prosseguindo na sua operação de pilhagem, o esquadrão pirata foi por terra até São Vicente, saqueando e queimando todos os engenhos que encontrava pela frente, pilhando e incendiando o vizinho povoado, deixando atrás de si um rastro de ódio e pavor.
Santos e São Vicente em 1615.
“O mar quebrava na popa de nosso navio…”
Depois do castigo imposto, Cavendish segue para para o Estreito de Magalhães. Knivet:“Partimos de Santos para os estreitos de Magalhães com vento favorável e durante 14 dias tivemos tempo bom. Passados dois dias de calmaria, os pilotos mediram suas posições e acharam que estávamos na altura do rio da Prata.” Mas não seria tão fácil assim. A ousadia, e o tempo perdido em Santos, iriam cobrar um preço. Cavendish chegou atrasado na boca do estreito, e pegou tempo desfavorável, “no mesmo dia em que pensamos ter visto terra, um sudoeste começou a soprar e o mar ficou muito escuro, inchado de ondas tão altas que não conseguíamos enxergar nenhum navio da nossa frota, embora estivéssemos próximos. O mar quebrava na popa de nosso navio e arrastava nossos homens assombrados de pavor para dentro dos botes.”
Dois meses de pauleira na região do estreito
Foram dois meses de pauleira brava nas cercanias do estreito de Magalhães. Ali, nas altas latitudes, é comum ventos de 60 a 80 nós (Entre 100 e 140 Km/h). Knivet, que um dia desembarcou para procurar comida, foi pego pelo vento gelado enquanto seu pé havia molhado. Sem roupas para trocar, o marujo conta que, “ao tirar minhas meias alguns dedos saíram junto, vi que meus pés estavam negros feito fuligem e não conseguia mais senti-los de todo. Não mais conseguia caminhar.” Knivet conta que a frota enfim conseguiu entrar: “penetramos ainda mais para os estreitos, apesar do vento contrario e do frio que matou por dia oito ou nove homens de nosso navio.” O mar dava-lhe o troco. “nesse lugar um ourives chamado Harris perdeu o nariz; quando tentou assoá-lo, ele acabou caindo de seus dedos no fogo.”
‘O capitão- mor rumou de volta ao Brasil’
A viagem continuou caótica. A frota se dispersou, um dos navios perdeu o mastro principal e também desapareceu. Sobrou o navio de nosso narrador. Knivet conta que Cavendish rumou para Santos, para tentar encontrar seus pares. Lá ficou por três dias até que parte da tripulação, que havia desembarcado, fora morta como retaliação. Então, decidem voltar para a ‘ilha de São Sebastião’ (ou Ilhabela). No caminho mudam de planos. O portuga preso em Cabo Frio entrega a fraca defesa da Capitania do Espírito Santo, e ‘garante que sem nenhum risco poderiam atacar vários engenhos de açúcar e conseguir boa provisão de gado’. Os piratas ingleses não pensam duas vezes: decidem atacar o Espírito Santo, para onde navegam.
Piratas atacam o Espírito Santo e voltam à São Sebastião
Oito dias depois fundeiam na baía. “O capitão, achando que o português nos desejava trair, sem nenhum julgamento mandou enforcá-lo, o que foi feito imediatamente. Em seguida, escolheu 120 homens, dos melhores que havia em ambos os navios para o desembarque.” Mas desta vez o ataque foi um fracasso. Knivet conta que perderam 80 homens na refrega. Depois da sova, decidem voltar a São Sebastião. Ao chegarem, a primeira providência do capitão foi se desfazer do peso morto: cerca de 20 homens feridos e famintos, inclusive o narrador, foram abandonados em Ilhabela. Durante oito dias Knivet sobreviveu comendo caranguejos. Dias depois, mais 40 homens foram largados em Ilhabela. Finalmente, nosso Indiana Jones do século 16 é feito prisioneiro pelos portugueses e levado para o Rio de Janeiro. A narrativa não para aí. Houve uma série de aventuras em Terra Brasilis, quase dez anos, fugas de canibais, ataques no Rio Grande do Norte, e outros, até que Knivet consegue voltar a Londres onde publica sua saga em 1625.
Por diversas vezes Knivet esteve perto de se tornar banquete.
Caiçaras de pele e olhos claros em Ilhabela
Fica o registro dos desembarques em Ilhabela, justificando caiçaras de pele clara e olhos azuis, não incomuns, naquela ilha. De onde teriam vindo? Agora você já sabe. Os ataques piratas continuaram a todo pano. O país que estava nascendo era a bola da vez. Chamou tanto a atenção que desde 1555 a França havia plantado uma filial de seu país em plena baía de Guanabara, a França Antártica. Voltaremos ao tema, e a mais piratas, em breve.
Fontes: Vinte Luas – Viagem de Paulmir de Gonneville ao Brasil, 1503 -1505, de Leila Perrone- Moisés, Cia. das Letras; https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/10/descendente-de-indio-alcado-a-nobreza-na-franca-refaz-passos-do-parente.shtml; Anthony Knivet, As Incríveis Aventuras E Estranhos Infortúnios De Anthony Knivet, organização de Sheila Moura Hue, ed. Zahar.
(Via https://marsemfim.com.br)
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