O MARISCO DO POETA - I
Por que será que figuras populares desta extraordinária cidade não são encontradas nas missas das sete, mas sim nos botequins da vida? Entregava-me, certa época, à perdição de um marisco fresquinho dos costões do Saquinho na venda do Ori, no Abraão, onde a boemia costumava se reunir para degustar frutos do mar, sob a forte proteção de São Jorge, santo que protege a casa, com imagem espalhadas pelo estabelecimento e resplandecendo em ouro pendurado no peito cabeludo do manezinho comerciante.
Tião, metido a poeta de botequim, busca inspiração para versejar: "o que sê será..." Mas logo sente-se desestimulado com a presença do poeta Zininho, descartando-o numa frase carregada de mau humor: "por mais que o céu esteja azul, sempre existe um urubu no ar". Seu Marinho, então inspetor de quarteirão do bairro, lamenta que seu fígado não esteja no melhor de seus dias, mas exercita a mente provocando o compositor para relembrar nome de ruas antigas. Aproveita a presença de João Soares, que quando estava na roda, o grupo somava quase três séculos de história com passaporte carimbado na boemia da Ilha antiga.
O marisco ao bafo preparado pelo Coelho, colocado sobre o balcão, foi eleito presidente da mesa por unanimidade.
Cervejas geladas são consumidas com cachaça e underberg, com pretexto para não deixar o fígado desamparado entre rochedo e o mar. "Marisco tem que ter cachaça" exclama Carneiro. "Não comam o pentelhinho do marisco, ele dá congestão" - previne seu Marinho. "Esse mexilhão está louco de bom" - ressalta um gaúcho, novo no bairro, que se alistou na roda sem ser convidado. "Mexilhão é a pinta da mãe" extravasa Ori, com seu linguajar costumeiramente chulo. "Mas que agressão tchê", mãe com mexilhão não combinam" reage o gaúcho.
"Diz um número aí! - grita alguém. É o Jordão, que está chegando e como de costume agitando o ambiente. Abraça o Zininho com saudação costumeira: "Como vais, ô manequim de funerária?" O poeta quase engole o cigarro de raiva, mas se detém. "Cala a boca, ô salva-vidas de aquário!" retoma Jordão tapando a boca de um bichinho ao lado que o provocava. Como sempre, Zininho é a figura central do recinto, soltando grossas baforadas e anuviando o ambiente. Há quem reclame da presença do cigarro, mas o poeta se defende: "Deixem em paz o meu cigarrinho de todos os dias que alimenta e acalma a minha enfizema." Na mesa ao lado o dominó bate forte sobre a mesa, mas ninguém toma conhecimento.
Zininho pede ao Coelho mais uma Caracú. Deu um tempo no uísque, está na fase de engorda. Mais uma baforada, segura o queixo com a mão. É sinal de que está mergulhando em nostalgia. E tem razão de sobra para comemorar. Fazem exatamente 45 anos que casou com dona Ivete. Relembra o episódio como se fosse hoje. A estradinha de chão batido até o velho hotel em Canasvieiras, horas de viagem em carro de praça. A primeira noite, o passeio pela praia absolutamente deserta. Vagalumes iluminavam a noite turva, como silêncio madrugal sendo acordado pela bem harmonizada cantoria do terno de reis, à porta de cada quarto, sob os auspícios de uma bem temperada concertada. Enquanto o poeta viaja no tempo, os mariscos a praia do Saquinho continuam sendo degustados com voraz apetite. (Continua amanhã).
(Crônica do Jornalista Aldírio Simões, publicada no dia 20.12.2002)
Bar do Ori |
Nenhum comentário:
Postar um comentário