Tela de Cibele Souto Amade mostra desembarque de Dom Pedro I em Canasvieiras. Num escaler, o imperador deixa a nau rumo a Desterro. Ao fundo, a fortaleza de São José da Ponta Grossa.
Por Billy Culleton
Foi graças a um pescador que o governador de Santa Catarina, brigadeiro Francisco de Albuquerque Mello, ficou sabendo da presença do imperador Dom Pedro I em Desterro.
Eram 17h30min do dia 29 de novembro de 1826 quando o navio com o imperador a bordo fundeou na Praia de Canasvieiras, no Norte da Ilha de Santa Catarina.
Na madrugada do dia seguinte, Dom Pedro acordou às 5h e deixou o navio a bordo de um pequeno bote, chamado escaler, em direção ao Centro da cidade, onde chegou antes do meio-dia.
Alertado pelos nativos, o governador foi tentar recepcioná-lo na Baía Norte com seu próprio escaler, mas os ventos não permitiram o encontro no mar.
Para surpresa geral, Dom Pedro e sua comitiva desceram no Forte Santana, na atual avenida Beira Mar Norte, e foram caminhando até a Catedral para assistir à missa.
Forte Santana, no Centro da cidade
O imperador estava a caminho do Rio Grande do Sul e pretendia coordenar as tropas brasileiras que lutavam contra a Argentina pela posse do território uruguaio: era a Guerra Cisplatina, que se desenvolveu entre os anos 1825 e 1828.
Os detalhes desta história foram descobertas recentemente e estão baseadas no relato do próprio imperador, que escreveu uma espécie de diário, chamado ‘Itinerário de Jornada’, sobre sua viagem de 37 dias pelo Sul do Brasil.
O manuscrito foi anexado à carta enviada à imperatriz Leopoldina, desde Porto Alegre, em 8 de dezembro de 1826. O documento está arquivado no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
O resgate histórico foi feito pelo jornalista gaúcho Nelson Adams Filho, em seu livro “A maluca viagem de Dom Pedro I pelo Sul do Brasil”, lançado em 2016. Nele, são apresentados as particularidades da aventura que esta reportagem do Floripa Centro transcreve.
Caminhada pela Praia de SambaquiDom Pedro I tinha saído do Rio de Janeiro em 25 de novembro e quatro dias depois chega a Desterro, sua primeira parada, onde ficaria dois dias.
Duas horas depois de sair de Canasvieiras, seu escaler chegou na Ponta do Sambaqui. Ali, Dom Pedro colocou os pés em terra pela primeira vez no Sul do Brasil. Caminhou pelo local e, depois de uma hora e meia, continuou navegando pela costa Oeste da Ilha, passando por Santo Antônio de Lisboa, Cacupé e João Paulo, até a Baía Norte, onde chegou às 11h30min.
Mapa mostra alguns dos locais por onde passou o imperador até chegar no Centro (Imagem: Viva Floripa)
Ali desembarcou no Forte Santana (que ele chama de Forte do Estreito), seguindo imediatamente a pé até o centro da cidade, onde assistiu à missa na Catedral.
No trajeto de 15 minutos, algumas pessoas que já sabiam da ilustre presença começaram a acompanhá-lo e aclamá-lo pelas precárias ruas da época.
“Esta feliz notícia, comunicou-se logo por toda a cidade por maneira que no desembarque e por todo o trânsito até a Igreja matriz, foi S. Magestade acompanhado pelo povo que em vivas patenteava os seus sentimentos e, na sua ingenuidade, a sinceridade das suas impressões”, escreveu o governador Albuquerque Mello, em correspondência enviada semanas depois ao marquês de Caravellas, ministro do Império.
Passeio a cavalo pelo CentroNo manuscrito, Dom Pedro conta que após a missa na atual Catedral foi com sua comitiva ao Palácio do Governo (hoje, Palácio Cruz e Sousa) onde se hospedou.
Ali recebeu as homenagens das autoridades locais e de “cidadãos de todas as classes que, à porta, ambicionavam a honra de beijar a mão augusta do adorado soberano”, como detalha o governador.
Mas o imperador buscou abreviar as deferências porque queria conhecer os encantos da cidade. Por isso, depois do almoço subiu no seu cavalo para dar um passeio pelas redondezas, que se estendeu por toda a tarde.
Tela “A proclamação da Independência” (1844), de François-René Moreaux, dá uma ideia de como teria sido a recepção de Dom Pedro I em Desterro
A presença do imperador provocou um frenesi entre os moradores do Centro. “Repicavam os sinos, chamando as irmandades para, reunidas ao vigário, conduzirem o pallio; os tambores tocando a reunir soldados de linha e milicianos. Apressadamente tratavam outros de mandar preparar as lanternas e candieiros com azeite de baleia para iluminação, enquanto outros se dirigiam à mata em busca de palmeiras para ornamentação das praças e ruas; dir-se-ia que uma violenta comoção nervosa havia abalado aquelle pacato povo”, contou Albuquerque Mello.
Na época, a Ilha tinha 6,5 mil moradores e a província de Santa Catarina somava 35 mil habitantes.
Naquela tarde, Dom Pedro I começou a preparar a sua saída a cavalo para o Rio Grande do Sul, seu destino final. Para isso, como explica o governador, “ordenou a prontificação dos seus transportes, pagando tudo do seu particular bolsinho”.Adams Filho, autor do livro ‘A maluca viagem...’, explica que o cavalo campeiro já existia em território catarinense desde 1517, trazido por Álvar Núñez Cabeza de Vaca, explorador espanhol.
Às 4h do dia 1º de dezembro, a pequena comitiva deixou o centro de Desterro pelo mar.
Detalhe da tela de Cibele Souto Amade
A bordo do escaler saíram do Forte Santana e costearam a margem Oeste da Ilha, passando pelas praias do Saco dos Limões, Costeira, Tapera e Ribeirão da Ilha até chegar à Caieira do Sul.
Três dias cavalgando por Santa CatarinaEm seu Itinerário, Dom Pedro informa que o percurso de 40 quilômetros até as proximidades da Fortaleza de Nossa Senhora de Araçatuba (atual Praia de Naufragados) foi completado em pouco mais de quatro horas, chegando às 8h30min.
Ali tomaram café da manhã, já providenciado por um grupo precursor, o mesmo que comprou os cavalos para a viagem.
Dom Pedro I nas Torres em pintura de Cibele Souto Amade
Às 11h30min, iniciaram a travessia de barco para o continente até a Praia do Sonho. Iniciava-se, nesse momento, a cavalgada de 450 quilômetros até a capital gaúcha, sendo 200 deles pelo litoral catarinense.
“A 1 hora chegamos ao Rio Imbahá (Embaú) aonde passamos em canoas e os cavalos a nado, montamos do outro lado do rio a 1 ½ e chegamos à Praia de Garopaba às 3 ½ e à Armação (Imbituba) às 8 ½”, escreveu Dom Pedro, que era um exímio cavaleiro.
Naquele dia, a comitiva fez um total de quatro horas e meia navegando e oito horas cavalgando. Lembrando que Santa Catarina não tinha estradas à época, eram trilhas ou pedaços de caminho.
Já os navios de transporte com as tropas, as corvetas e a Nau Pedro 1, que acompanhavam o imperador e chegaram com ele a Canasvieiras, seguiram pelo mar para Rio Grande.
A Nau Pedro I é a primeira que aparece na pintura sem identificação
Dom Pedro dormiu em rancho abandonadoNo sábado, 2 de dezembro, há 193 anos, Dom Pedro sai de Armação, às 8h, chegando quatro horas depois a Vila Nova (atual Imbituba), onde almoçou.
O livro ‘A maluca viagem…’ descreve a sequência. “Às 15h45min, retomaram a jornada e percorreram os 30 quilômetros até Laguna, onde dormiram num casarão de três andares, no Centro, na atual Rua Gustavo Richard. A casa foi demolida no século 20. Era um prédio com três portas de entrada arcadas, idênticas aos portais da Igreja Matriz da cidade. O proprietário era Sidney Barreiros”.
Palacete no centro de Laguna, onde o imperador pernoitou em 1826 (Acervo de Sidney Barreiros, cedida por Adílcio Cadorin – Imagem do livro ‘A maluca viagem…)
Nelson Adams Filho continua: “Em 3 de dezembro, Dom Pedro levantou às 6h e foi à missa no Centro da cidade e logo depois embarcou para atravessar o rio Tubarão. Ele a comitiva retomaram a cavalgada, passaram por Jaguaruna, Araranguá e Arroio do Silva, Balneário Gaivota, chegando a Passo de Torres às 19h30min, onde pernoitaram numa barraca de sapé abandonada.
O sapé é uma gramínea cujos caules são, após secos, utilizados para se construírem telhados de casas rústicas. Após dormirem nesse lugar inóspito, sujo e abandonado, atravessaram o Rio Mampituba e ao chegar a Torres, a primeira coisa que Dom Pedro fez foi lavar-se! Ou seja, estava sujo da jornada e da noite anterior.”
A passagem do Mampituba, em tela atribuída a Jean-Baptiste Debret, em 1827
Cinco dias no Estado rumo ao Rio Grande do SulNo dia seguinte, entraram no Rio Grande do Sul rumo a Porto Alegre, onde chegaram em 7 de dezembro. Terminava assim a passagem do Imperador Dom Pedro I por Santa Catarina. Foram cinco dias em território catarinense, nos quais ele pôde conhecer parte das belezas do Estado.
Esta história é desconhecida para a maioria dos catarinenses, inclusive as autoridades. Por isso, o Floripa Centro faz eco à reclamação do jornalista Nelson Adams Filho, autor do livro “A maluca viagem…’, que aponta não existir em nenhum lugar por onde Dom Pedro I passou em Santa Catarina, uma placa indicativa ou informação histórica sobre o fato.
Também não há, na literatura do Estado, alusão à passagem do imperador. ‘Um desleixo histórico das autoridades, pesquisadores que parecem desconhecer esse momento”, diz Adams Filho.
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