Na gravura do século XVI, representação mítica e aterrorizante do mar e de suas narrativas |
Eternizado nos livros como assustador celeiro de monstros,
o Atlântico
é palco de disputas geopolíticas
há séculos
//Por Karl Schurster e José Maria Gomes Neto
//Por Karl Schurster e José Maria Gomes Neto
Milênios a fio, até onde a literatura pode nos transportar, o Oceano Atlântico foi concebido como espaço do medo, contraponto à segurança da terra seca, e mesmo aqueles que dependiam de suas águas para sobreviver desconfiavam delas. Um cidadão do Velho Mundo que observasse o horizonte azul via-se diante de um interminável reino do temor, famoso pela instabilidade, relação bem estabelecida já na mitologia, pois os gregos criam que Posídon (nome grego para Netuno), o deus das águas salgadas, podia chacoalhar a terra desde as suas fundações. Seus animais só eram vistos quando retirados de seu elemento e, portanto, muito pouco se sabia de sua biologia, estimulando o surgimento de relatos fantásticos de monstros abissais, tão comuns às narrativas antigas. Para o poeta latino Avieno, por exemplo, esses animais singravam violentamente as águas, enquanto a Bíblia diz que os dentes do Leviatã (um monstro marinho) inspiravam tanto horror que ao vê-los mesmo os mais corajosos se atemorizavam.
Além disso, o Atlântico situava-se no mais sinistro ponto cardeal, o Oeste. Enquanto o Leste evocava o nascer do sol, portanto a vida, e, no Ocidente, o astro-rei se punha e a Terra era engolfada pela escuridão, situação que remontava a gregos e egípcios o mundo dos mortos: Osíris e sua barca mergulhavam no submundo, e Ulisses, em sua odisseia marítima, encontrou lá a entrada para as regiões abissais onde residiam as almas dos finados.
Em que pesem tais temores atávicos, vários marinheiros antigos navegaram as águas atlânticas, chegando ao extremo Norte (talvez até à Islândia) e toda a costa da África Ocidental até a Guiné. Em suas aventuras, a realidade e o maravilhoso com frequência se misturavam, mas alguns elementos são perceptivelmente reais: as longas distâncias (três, quatro meses de viagem), os perigos em quantidade, representados pelos monstros marinhos que acompanhavam as naves (cetáceos, possivelmente), calmarias, algas em quantidade, nevoeiros.
O Atlântico não convidava à segurança e não se prestava à diversão, diferentemente do que hoje ocorre. Seu aspecto era aterrorizante, evocativo de animais selvagens dispostos a levar à morte numa só bocada. Era um espaço imenso e nada conhecido – logo, extremamente temido.
Disputas em alto-mar
Embora tais medos fossem, de fato, sentidos, seguidas vezes homens do mar enfrentaram essas temeridades e cruzaram as águas. Pescadores europeus foram explorar os ricos cardumes do Mar do Norte, e para, além disso, os barcos tornaram-se máquinas militares: os vikings, possivelmente os primeiros conquistadores de oceano aberto, navegaram até as terras longínquas da Inglaterra, da Irlanda, da França e da Ibéria com vistas ao saque e à conquista, e mais ao Norte, das Ilhas Órcades até a Groenlândia, incorporaram novas áreas à esfera cultural europeia. As tecnologias inventadas e melhoradas nesse processo estimularam populações mais ao Sul às aventuras oceânicas, dentre os quais os portugueses, uns dentre muitos que seguiram até as águas piscosas do Norte em busca do sustento – neste caso, o peixe salgado. Séculos se passaram, as naves pesqueiras tornaram-se caravelas, e por mares nunca dantes navegados foram muito além da Taprobana, até a China, e em direção ao Ocidente, tocando terras americanas.
O Atlântico tornou-se, então, um local de disputa para as grandes potências marítimas. Suas rotas, regime de ventos e correntes representavam o segredo político-militar mais precioso do século XV, e os litorais americanos e africanos transformaram-se em pontos de disputa imperial e trampolins para a dominação política: lusitanos, espanhóis, holandeses e franceses, ingleses, dentre outros, cruzaram as vastidões aquáticas no intuito de conquistar terras, homens e riquezas.
Do século XVIII até 1914, a história das relações internacionais quase se confunde com a história das relações políticas entre as potências europeias e sua associação com o mar. O fim da Grande Guerra, como a Primeira Guerra Mundial fora chamada antes do conflito posterior, de 1939-1945, configurou a criação de um novo sistema internacional baseado nas alianças coletivas e referendado pela Liga das Nações, ou Sociedade das Nações. Esse projeto ganhou corpo a partir de 1919 e objetivava manter a paz e o respeito pelos direitos e pela soberania de cada Estado. Os anos do entreguerras tiveram diversas rotas comerciais e civis com o objetivo de manutenção do mercado internacional. O Oceano Atlântico tornou-se fundamental e atuou como palco do comércio mundial no período do pós-Guerra e durante a chamada Grande Depressão de 1929. Em setembro de 1939, começaria outra guerra. Todos os tratados e acordos internacionais seriam revistos mediante o desenrolar do conflito. O imperialismo nipônico e o expansionismo alemão, com a imposição da política externa italiana, pautariam parte dessa disputa reordenadora do cenário internacional. Os Estados Unidos, por trás da suposta neutralidade e da “política de boa vizinhança”, pouco depois decretariam o rainbow plan (plano de defesa do Hemisfério Ocidental decretado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, que fundamentou a presença norte-americana no Brasil, em especial no Nordeste, durante a Segunda Guerra Mundial) e tomariam para si a defesa do continente. As águas do Atlântico transformavam o seu corrente diálogo com o vento em briga.
Nova geopolítica das águas
Quando estudamos a história do mar, neste caso do Oceano Atlântico, estamos tratando de sua relação civilizacional com entorno que o envolve, dando a ele um sentido, transformando-o numa prática social e política. Nesse aspecto, estudar a história de um oceano é também estudar a geopolítica que o cerca com toda sua complexidade e profundidade. O novo século, que emergiu há 14 anos, trouxe uma nova dinâmica para o entendimento entre a civilização e o mar, em especial na América do Sul. Com a emergência no cenário internacional das nações sul-americanas e suas questões regionais/mundiais, o Atlântico volta ao centro do debate, agora como denominado pela Marinha Brasileira metaforicamente, a Amazônia Azul.
Superada a Guerra Fria, sua geopolítica e as implicações da bipolaridade (EUA vs. URSS) para a segurança e a defesa nacional das nações, principalmente no caso dos Estados emergentes, os interesses tornaram-se cada vez maiores nos grandes fluxos comerciais e na internacionalização das suas ações. Assim, começamos a perceber uma nova dinâmica nas relações entre as decisões políticas dos Estados no sistema internacional e sua associação com o Oceano Atlântico.
Nos últimos 20 anos, o sistemático enriquecimento e crescimento do Brasil, hoje a sexta economia global, ao lado do processo de explorações e precificação da riqueza natural, como no caso das descobertas de valiosas jazidas de gás e petróleo no offshore (no mar, em inglês), permitiram a irrupção de uma consciência nacional da urgência de defesa do nosso patrimônio oceânico. Esse tem sido, sem dúvida, um dos mais debatidos e controversos temas da nossa agenda política. De um lado, pelo âmbito nacional, o que fazer com os royalties do pré-sal e como se dará sua partilha entre os Estados da Federação e, de outro, no caráter internacional, colocar em prática a Convenção Internacional sobre o Direito do Mar, acordo multilateral dirigido pela ONU em 1982 e ratificado pelo Brasil em 1988.
*Karl Schurster é professor de História do Tempo Presente da Universidade de Pernambuco
*José Maria Gomes Neto é professor de História Antiga da Universidade de Pernambuco
(Do http://www.cartafundamental.com.br/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário