sábado, 17 de agosto de 2019

HOMENS E ALGAS

Foto Fernando Alexandre  
"Bem que os conheço a todos eles! Nasci também à beira do mar e guardo dentro do coração, como num búzio, a grande voz que embalou a minha infância e que, um dia, ainda chegará até mim, quando eu for descansar no alto da verde colina do Senhor dos Passos.

São os meus velhos amigos pescadores, esses homens cor de salmoura, de mãos lanhadas e pés descalços, que cheiram a sargaços moles e a limos esfiados. Bem que os conheço a todos eles: sei-lhes os nomes simples e as alcunhas pitorescas: o Antônio Adriano, o Doca, o Boi d’Água, o José Rainho, o Jango Maneta... Falo-lhes sempre a rude linguagem que eles gostam, sem iscas, sem malhas e sem peraus, ausculto-lhes as fundas palpitações dos seus desejos, ouço-lhes as amargas incertezas do mundo em que labutam; sinto-lhes as vidas cheias de ameaças, de tormentos, de resignações mudas e tranqüilas.

De alguns ouvi-lhes contar os perigos do mar alto, quando o vento sul, cheio de uivos e ameaças, levantava muros de água negra, e os filhos que morreram pequeninos, queimados pela sezão ou esvaídos em sangue; e as fomes que suportaram, numa cova de praia, no rancho sem esperanças e sem lumes! De outros, já mortos – o velho Quincas, o João Flores, o Anselmo, o Bochechudo, o Lourenço Carpes – conheci-lhes os corações e sem remorsos, e vi-lhes os cadáveres tristes, emagrecidos, rígidos, com os pés amarrados, dentro das suas mortalhas de riscadinho.

Bem que os conheço a todos eles, esses homens encardidos de babugem, de mãos duras e dedos picados pelos espinhéis, cheirando a lodos e a alcatrão. Sei das suas misérias,as canseiras, do seu abandono e das suas desesperanças sem remédio. Já vi os seus corpos em todas as posturas, cercados de areias, sem olhos, das bocas roídas, os ventres túmidos e podres, numa volta de praia – onde o mar atira sempre as escórias.

Entre bóias fendidas de cortiça, velhos pedaços de cordas e grandes rolos de algas e águas-vivas, alguns homens dormem ao sol: são pescadores fatigados, seminus, que repousam nas areias opacas, depois de uma noite de vigílias secas e de cansaços estéreis. Dormem misturados aos rebotalhos das redes e aos detritos úmidos nas vagas, ligados no mesmo destino e confundidos nas mesmas causas – homens e algas cuspidos todos numa praia, sob o sol dourado e vivo: as algas pelo mar e os homens pela miséria e abandono."

 
(Fragmento de "Homens e Algas") Othon d’Eça (1892-1956) nasceu na antiga Desterro, Ilha de Santa Catarina/Brasil. “Homens e Algas” foi seu último livro.

Um comentário:

Campeche Fatos e Fotos disse...

Um belo livro que mostra a história dos pescadores daquela época e a vida sofrida que levavam.
Comecei a ler o livro esse ano, mas antes de poder acabar meu irmão deu uma lida por cima, gostou e levou embora para Inglaterra, onde mora.
Abraços
http://campechefatosefotos.blogspot.com/