sábado, 30 de março de 2019

MAR DE ILHAS

Arquipélago de Trindade e Martim Vaz. Ilha de Trindade. (Foto: Simone Marinho).

Arquipélago de Trindade e Martim Vaz, joia da coroa



Este escriba teve o privilégio de conhecer o arquipélago de Trindade e Martim Vaz, onde estive por três vezes. Tudo começou com a regata de longo curso Eldorado – Brasilis, criada pela rádio Eldorado no ano 2000. A regata teve oito edições, proporcionando a centenas de velejadores conhecerem esta maravilha da natureza. O percurso era, Vitória, ES – Trindade (onde ficávamos por um par de dias) – Vitória. Até hoje é o lugar mais espetacular que conheci. Sua beleza é dramática, a história, intrigante; e a biodiversidade, a maior entre as ilhas do Atlântico Sul.

Conheça o Arquipélago de Trindade e Martim Vaz

Ele é formado pelas ilhas da Trindade, Martim Vaz, que fica a cerca de 40 km de distância, e mais: ao lado de Martim Vaz existem as ilhotas do Norte e do Sul e mais alguns rochedos. Ao todo, o arquipélago tem 10,4 km2.

Formação do arquipélago de Trindade e Martim Vaz

De formação vulcânica, distante 630 milhas da costa de Vitória, a ilha emerge no meio de um mar de cor azul arroxeado, típico das profundidades abissais, como um enorme paredão. A um terço da distância entre o Brasil e a África, Trindade fica longe o suficiente da poluição atmosférica para que o ar seja totalmente limpo, o que proporciona uma visão ainda mais privilegiada de suas formas e cores. Sua altura máxima é de 600 metros, e a geografia, é única. Trindade tem morros e picos que mais parecem calombos com ‘inchaços’ lembrando feridas, resultado do derrame de lava, ora com texturas lisas, ora com rasgos profundos produzidos pela erosão eólica. O colorido é de tons fortes, destacando-se todos os matrizes do amarelo, do verde, e do cinza; e alguns do terracota . Em contraste com o azulão roxo do mar, e o azul celeste do céu, o conjunto forma a beleza dramática de que falei. Sobre a descoberta, e aspectos geopolíticos, o Mar Sem Fim já escreveu em outra matéria.

Em primeiro plano, Martim Vaz, em segundo, Trindade. Foto de João Luiz Gasparini.

Trindade, um histórico de visitantes ilustres

Trindade faz parte da história náutica do Brasil. Foi descoberta por nautas portugueses. Algumas fontes dizem que João da Nova teria sido o descobridor. Outras, falam em Estavam da Gama, ambas acertam no ano, 1501. A ilha tem um saboroso histórico de visitantes. Entre eles o astrônomo inglês Edmond Halley, em 1700 que, encontrando-a deserta, ‘tomou’ posse da ilha em nome da Coroa britânica; o navegador e naturalista inglês James Cook, em 1775; Dumont d’Urville, navegador francês, em 1826; James Ross (que desembarcou na ilha), em rumo para a Antártica, em 1839; e também ponto de parada de Robert Scott, a caminho do Polo Sul, em 1911. A história registra a parada de todos estes notáveis em Trindade. Nem todos, entretanto, conseguiram desembarcar. A ilha da Trindade não tem portos naturais. Também brasileiros ilustres a visitaram de maneira forçada. Juarez Távora foi um deles, preso entre 1924 e 1926. Naquela época Trindade se tornou presídio para os rebeldes do Movimento Tenentista, de 1922.
Edmond Halley

Mas há outro, ainda mais notável, o famoso…

Capitão Kidd em Trindade?

William Kidd, popularmente conhecido como Capitão Kidd (1645- 1701), foi um corsário escocês muito famoso. Navegou os sete mares azucrinando quem encontrasse no caminho. Pois saiba que no início do século 19, histórias de piratas povoavam o imaginário de navegadores. Um deles é Apsley Cherry-Garrard, tripulante de Robert Scott na viagem que seria conhecida como a ‘corrida ao Polo Sul‘, quando o inglês Robert Scott, e o 
norueguês Roald Amundsen, disputavam quem chegaria primeiro.
O tesouro do capitão Kidd.

Scott, como se sabe, morreu na marcha de volta. Mas Apsley sobreviveu. E depois publicou “A Pior Viagem do Mundo – última expedição de Scott à Antártica (Cia das Letras)“. No livro ele conta que Scott ancorou em Trindade, no caminho entre a Inglaterra e a Antártica. Com a palavra Cherry- Garrard: “O capitão Kidd ali entregou um tesouro. Há uns cinco anos um camarada chamado Knight viveu na ilha durante seis meses com um grupo de mineiros de Newcastle- tentando por as mãos no tesouro…(pg.94)” Com este depoimento, fica no ar a visita de um dos mais famosos piratas de todos os tempos. Até nisso Trindade arrasa.

Tesouro da Catedral de Lima enterrado na ilha da Trindade

As informações sobre Trindade e Martim Vaz são escassas, e perdidas em diversos documentos. Ao pesquisarmos para este post, achamos um deles, sensacional, que não conhecíamos. Uma Conferência sobre a Ilha da Trindade, feita pelo prof. Bruno Lobo, na Biblioteca Nacional, em 1918. Este saboroso documento confirma a lenda do Capitão Kidd, e o fato de Knight ter feito expedições para desenterrar o tesouro. E mais, depois de localizar as fontes destas informações, o texto da conferência vai além e conta que “…Quando foi da libertação do Peru, os espanhóis guardaram seus tesouros, bem como o ouro e prataria da catedral de Lima. Na fuga em navios pátrios firam pilhados pelos piratas que roubaram todo este resto de tesouro.” Este seria o tesouro enterrado por Kidd em Trindade.

Mapa da ilha da Trindade, parte da Conferência de 1918.

Ilha de Trindade – período da primeira posse inglesa, 1781 – 1782

O livro “Ilha da Trindade A ocupação britânica e o reconhecimento da soberania brasileira (1895 – 1896)” diz que “A Ilha da Trindade seria ocupada, pela primeira vez, somente em 1781, quando o governo britânico, supondo-se proprietário da ilha em decorrência do ato de posse realizado por Halley, ordenou sua ocupação para estabelecer um pequeno destacamento militar para que a ilha fosse utilizada como base de apoio à Marinha britânica. Fortes reclamações por parte do governo espanhol junto à Corte portuguesa, que acabou por reivindicar a desocupação da ilha à Coroa britânica, o que foi aceito e cumprido pela Inglaterra em 1782.”

Riqueza da fauna chama atenção desde 1700

Trindade é uma beleza por qualquer ângulo que se olhe. Hoje, é considerada a ilha mais biodiversa do Atlântico Sul. Todos os notáveis que nela pararam, fizeram pesquisa pela assombrosa biodiversidade. Sem falar nos milhares de caranguejos, Johngarthia lagostoma, um tipo de carapaça amarela, que infestam Trindade, das praias até o pico mais alto, pasme você.
O Johngarthia lagostoma, ou caranguejo amarelo de Trindade.(Foto:Drew Avery)

Segunda posse inglesa, 1895 – 1896

Aspley, acima citado, que desembarcou em Trindade, ficou impressionado com a quantidade de caranguejos, chegou a afirmar que “ninguém conseguiu se estabelecer na região devido aos caranguejos“. O fato é que em janeiro de 1895 os ingleses mais uma vez desembarcaram e ‘tomaram posse da ilha’, onde ficaram até agosto de 1896. O livro Juca Paranhos, o Barão de Rio Branco (Cia das letras) explica: “A ilha estava abandonada havia quase um século. A pouca atenção do governo brasileiro ficou patente pelo fato de a ocupação inglesa só ter sido conhecida em junho, depois que a imprensa inglesa noticiou o fato.” Não fosse o talento de Rio Branco e talvez Trindade hoje fosse inglesa, como quase todas as ilhas do Atlântico Sul.Para evitar ‘novas posses’, desde 1957 Trindade é guarnecida por uma força da Marinha do Brasil. Lá ainda existe um posto oceanográfico (Poit).

Fantástico paredão em Trindade. Foto: Marcelo Coelho.

Tentativa de ocupar a ilha por brasileiros

Depois da primeira ocupação inglesa o governo brasileiro tentou ocupar a ilha da Trindade. Quem conta é o site www20.opovo.com.br: “O navegante português José de Mello Brayner deixou na ilha 150 casais vindos da colônia dos Açores e religiosos franciscanos. A ideia iniciar um povoamento em Trindade. Além das pessoas, foram levadas sementes, ovelhas e porcos. Mas, segundo o naturalista Bruno Álvares da Silva Lobo, a empreitada não vingou. Em 1795, as famílias foram resgatadas em estado absoluto de miséria.” Esta tentativa de ocupação também foi confirmada pelo texto da Conferência.

Marco mandado levantar em 1897 depois das três tentativas de posse inglesa.

Trindade, um principado?

Como dissemos, Trindade é um fenômeno. Já houve quem quisesse transforma-la num país. Livro, Ilha da Trindade: “Em 1888, durante uma viagem pelo Atlântico Sul, o Barão Harden Hickey, aventureiro norte-americano, genro de um grande magnata do petróleo, visitou a Ilha da Trindade. Julgando-a sem dono após explorá-la, Hickey dela tomou posse em seu nome, planejando ali fundar um novo Estado.“

Arquipélago de Trindade e Martim Vaz Campeão em biodiversidade

São mais de 650 espécies de algas, invertebrados, peixes, e outros vertebrados; e muitas delas são endêmicas. Só de peixes são 270 espécies – 24 ameaçados de extinção –, maior índice de diversidade entre todas as ilhas brasileiras e um dos maiores do Atlântico Sul. Outra espécie endêmica é a fragata-de-trindade, criticamente ameaçada de extinção.
Arquipélago de Trindade e Martim Vaz. Mar de Trindade. Foto: João Luiz Gasparini.

A ilha também é local de desova de duas espécies de tartarugas, por isso há um posto avançado do TAMAR. São muito famosas as samambaias gigantes de Trindade, mais uma espécie endêmica. Por toda esta riqueza, Trindade tornou-se Reserva da Biosfera. E, mais recentemente, foi finalmente transformada em unidade de conservação, um feito do Governo Temer.

Parte da cadeia submarina Vitória Trindade

O arquipélago de Trindade e Martim Vaz é parte da cadeia submarina Vitória Trindade, por si só um espetáculo natural cuja biodiversidade é considerável.
Cadeia submarina Vitória Trindade, em cuja extremidade leste fica o Arquipélago de Trindade e Martim Vaz.

O biólogo capixaba Hudson Pinheiro fala sobre a formação da cadeia submarina: “Conforme o nível do mar subiu nos últimos 10 mil anos, muitas espécies permaneceram isoladas e se adaptaram aos novos ambientes, agora submersos. A cordilheira é habitada por cerca de 140 tipos de moluscos, 28 de esponjas, 87 de peixes de mar aberto, 17 de tubarões e 12 de golfinhos e baleias.” Hudson Pinheiro diz que “O elo da cordilheira com o continente é o que torna a formação brasileira única no mundo. Há outras cadeias montanhosas de origem vulcânica no meio do oceano, como o Havaí. Mas, como estão distantes do continente, o deslocamento das espécies nessas áreas é limitado.”

Algas calcárias

Estes não são, entretanto, os únicos responsáveis pela diversidade da cadeia submarina. A outra explicação seria a variedade de algas calcárias, tipo de planta marinha responsável pela formação de recifes. Na Cadeia Vitória- Trindade há nada menos que 16 espécies destas algas que acabam por criar habitats para centenas de outras espécies.

Ameaças ao Arquipélago de Trindade e Martim Vaz

São duas as mais importantes: pesca no entorno do arquipélago, e mineração submarina. O Mar Sem Fim entrevistou o professor Alberto Lindner, graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (1999), mestrado em Zoologia pela Universidade de São Paulo (2000), doutorado em Zoologia pela Duke University (2005), e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (2009). Lindner com a palavra: “…Tem alguns trabalhos em relação à pesca na região. Um deles do Hudson Pinheiro…desde a década de 90 existem informações de pessoas que vão para lá fazer pesquisa e observam barcos de pesca no entorno das duas. E pelo menos há 20 anos, existe a questão da pesca recreacional feita pelos marinheiros que ficam na base… O trabalho do Hudson mostra que existe uma frota de embarcações menores, de 15 metros, do Espírito Santo. Eles utilizam o espinhel de fundo…uma linha de cerca de 2 kms de comprimento, que visa principalmente os tubarões como o bico- fino, ou tubarão-dos-recifes; o lambaru, ou tubarão lixa; além de badejos e garoupas que são peixes de fundo. Estes barcos também pescam de currico próximos as ilhas.”

Estação Científica da ilha da Trindade. Foto: http://www.uespi.br.

Frota de pesca industrial na Cadeia Vitória Trindade

Alberto Lindner: “… Em 2007, Hudson Pinheiro passou um mês na ilha. Ele fez contatos com embarcações pesqueiras, esteve a bordo delas… E além desta pesca existe uma frota em escala industrial que vem tanto do Espírito Santo, como da Bahia e Santa Catarina, e fazem espinhel de superfície. São linhas de até 60 kms de comprimento com até três mil anzóis, principalmente para a pesca do espadarte e do tubarão azul…O que tem demonstrado é que esta pesca é ainda mais intensa na Cadeia Vitória Trindade que nas ilhas. Mas também ocorre no entorno das ilhas.”

‘Trindade e Martim Vaz estão sob um hot spot’

Alberto Lindner:“…Trindade e Martim vaz estão sobre um hot spot, que é o centro da formação da Cadeia Vitória Trindade. Já os montes submarinos, mais próximos da costa, foram formados há dezenas de milhões de anos, onde hoje fica Trindade e Martim Vaz. Mas, por conta da separação das placas tectônicas, eles hoje estão mais próximos da costa.”

Mineração na Cadeia Vitória Trindade

Outro temor dos pesquisadores é a mineração submarina. Segundo um estudo no site do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) já concedeu duas licenças para a exploração de bancos de rodolito (crostas de alga calcária e outros organismos) e recifes de corais na Cadeia Vitória-Trindade.

A atividade durou três anos, e o material extraído foi usado como fertilizante em plantações de cana-de-açúcar. No site do DNPM há registro de novos pedidos de licença na região. Pois é, infelizmente o Brasil está pronto para mais esta atividade extremamente danosa aos mares, a mineração submarina.

Conheça um pouco mais do Arquipélago de Trindade e Martim Vaz.


Fontes: https://g1.globo.com/natureza/noticia/a-desconhecida-cordilheira-no-litoral-brasileiro-que-pode-virar-a-maior-reserva-marinha-do-atlantico.ghtml; https://www20.opovo.com.br/especiais/trindade/caranguejos-amarelos.html; http://www.museunacional.ufrj.br/obrasraras/o/arq-mn_22/arq-mn_22-105-169.pdf; http://funag.gov.br/loja/download/1141_ilha_da_trindade.pdf.

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