O acesso aos cardumes pelos caiçaras é prejudicado pela pesca industrial
Em Paraty, caiçaras são expulsos por condomínios de alto padrão
por Repórter Brasil
Habitantes das praias mais preservadas do litoral carioca, comunidades são proibidas de pescar
Todo o tormento começou com as estradas. Primeiro a Cunha-Paraty (RJ), aberta em 1955, que inaugurou a conexão do território caiçara com o resto do país, trazendo com ela os primeiros turistas e, também, os primeiros interessados em adquirir aquelas terras, de olho no futuro. Quando a Rio-Santos rasgou a região em 1974, estava selado o destino dos caiçaras de Paraty - uma luta infinda para permanecer no lugar de seus antepassados, combatendo dois inimigos ao mesmo tempo: a especulação imobiliária e a preservação ambiental ditada pelo Estado.
O primeiro avanço foi a compra de terrenos de caiçaras para a construção de casas de veraneio e condomínios de luxo e, de forma mais violenta, mediante a ação de grileiros. Destes, o mais conhecido foi Gibrail Tannus Notari, que empreendeu uma investida sobre as comunidades tradicionais que já dura seis décadas, herdada por seu filho. A família é acusada de grilagem no Atlas Fundiário do Rio de Janeiro de 1991 e há uma ação movida pelo estado no Superior Tribunal Federal contra os títulos que os Tannus Notari apresentam como seus.
Expulsos, o destino dos caiçaras foi o mesmo: ir morar nas favelas de Paraty e, muitas vezes, trabalhar como caseiros ou domésticas nas mesmas casas que se construíram sobre suas antigas roças. “Fizeram de tudo para expulsar as comunidades”, diz Marcela Cananéa, liderança da praia do Sono.
Foi para conter a especulação imobiliária que os órgãos ambientais criaram três Unidades de Conservação na região: o Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, a Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, em 1983, e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, em 1992 – as duas últimas se sobrepõem.
Dessas, só a APA não é de proteção integral, ou seja, permite o uso da terra e do mar pelos caiçaras – existe, inclusive, uma parceria ali, com os caiçaras participando do novo plano de manejo da unidade. Quanto às outras duas, se por um lado ajudaram a frear o avanço dos condomínios, por outro impuseram numerosas regras que comprometem o modo de vida caiçara. Todas são geridas pelo ICMBio “Essas unidades não me reconhecem como parte do ambiente”, diz Robson Possidonio, liderança de Trindade. “Não posso fazer roça, não posso retirar madeira para a canoa, não posso pescar.”
Se ao menos a preservação oficial do meio ambiente freasse de fato a especulação, já seria alguma coisa. Mas, diz Robson, não é bem isso que ocorre: “O empresário começa a construir sua casa, vem o Instituto Nacional do Meio Ambiente, embarga, e, na semana seguinte, por influência política, a construção já está desembargada. Hoje a península toda é casa de magnata”. A península à qual ele se refere é a ponta da Juatinga, onde fica a Reserva Ecológica homônima e o trecho mais preservado da região, em que, não por coincidência, está a maior parte das últimas comunidades praieiras tradicionais, que seguem com a cultura caiçara.
Não bastassem as restrições à pesca e às roças, as famílias se veem impactadas pela presença das casas de veraneio. Na Praia Grande da Cajaíba, a vítima mais séria da grilagem pelos Tannus Notari – que, apesar de responder por crimes ambientais, pretendem construir um resort no local –, o número de famílias caiçaras foi reduzido de 24 para duas em menos de duas décadas.
Na praia do Sono, o conflito é com o vizinho Condomínio Laranjeiras, que fechou o acesso das 40 famílias à comunidade onde vivem. “Você só chega no Sono por trilha ou de barco”, explica Marcela. O problema é que a trilha leva duas horas para ser percorrida e o cais de onde saem os barcos fica dentro do condomínio. Para acessá-lo, os caiçaras devem pegar uma kombi, já que não podem transitar a pé lá dentro.
União
O principal instrumento de luta dos caiçaras surgiu em 2007, com a criação do Fórum de Comunidades Tradicionais Angra–Parati–Ubatuba. Um marco também porque, pela primeira vez, os caiçaras se uniam aos indígenas e aos quilombolas em um esforço coletivo pela garantia do território. “Um está sensibilizado com o outro”, afirma Robson Possidonio. “Se os indígenas têm algum problema, caiçaras e quilombolas vão lá ajudar.”
O fórum foi o primeiro passo de um movimento interestadual que, em 2014, tornou-se nacional, com o surgimento da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, que reúne representantes do litoral do Paraná ao do Rio de Janeiro.“O movimento ainda é bebê”, diz Marcela, mas aponta na direção de algumas soluções viáveis.
Uma delas é o turismo de base comunitária, que já vem sendo implantado em algumas comunidades, junto a iniciativas de agroecologia e educação diferenciada. Outra é a criação de uma Reserva Extrativista Marinha que permita regularizar a pesca feita pelos caiçaras –em tese proibida pelas Unidades de Conservação de Proteção Integral– e, ao mesmo tempo, garantir o acesso aos cardumes, cada vez mais raros pela concorrência com a pesca industrial.
“É uma pesca desleal”, diz Robson. “Quando a pescaria chega para a gente, os barcos já estão aqui.” Caiçara, palavra que deriva do tupi-guarani, significa “cerca feita de ramos”: uma referência ao cercado das roças ou à pesca de cerco que fazem no mar, perto das encostas.
Procurados pela reportagem, a família Tannus Notari, os responsáveis pelo Condomínio Laranjeiras e o ICMBio não responderam até o fechamento desta edição.
(Do//www.cartacapital.com.br/)
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