domingo, 11 de fevereiro de 2018

CARNAVAL, OUTROS...


Entrudo: como era o Carnaval “dazantiga” em Florianópolis

Retirado do jornal “O Argos da Província de Santa Catarina” de 09.02.1858. Nessa época, Florianópolis ainda era conhecida como “Desterro”.
Naquele fevereiro de 1858, os vendedores da cidade já anunciavam seus produtos especiais para o Carnaval. Se hoje o feriado é um dos mais esperados do ano, e as opiniões se dividem em torno da festa, na Desterro do século 19 não era diferente. Isso porque, antes de o Carnaval ganhar ares europeus, com bailes de salão e máscaras italianas, o que havia por aqui era o entrudo – uma tradição portuguesa muito antiga, mas que a elite local rejeitava como “bárbara” e coisa de gente que não era civilizada.

ENTRUDO?

De acordo com os registros históricos, o Entrudo era uma brincadeira de Carnaval comum em Desterro; encontramos a primeira menção escrita a ela em 1832 e a última, em 1891. Oficialmente o entrudo acontecia nos três dias que antecediam a Quaresma, mas a folia muitas vezes começava lá em dezembro.

A brincadeira do entrudo consistia em molhar uns ao outros, o que pode parecer até inocente para os nossos padrões de Carnaval, mas há uma explicação: basta lembrar que as pessoas não tinham por hábito tomar banho de imersão (você pode ler mais sobre os hábitos de higiene no século 19 clicando aqui). Vamos acrescentar a isso o fato de que o pessoal do entrudo era bem criativo nas misturas. Valia jogar desde pós, perfume e água colorida até líquidos fétidos e dejetos humanos, que eram lançados através das janelas com qualquer coisa que estivesse à mão – fosse a gamela da cozinha ou o bom e velho penico.

O entrudo frequentava assiduamente os jornais e charges da época. Esta charge foi publicada no jornal “O Mequetrefe” (RJ) em 20 de fevereiro de 1885.

O grande problema do entrudo é que ninguém estava livre. Durante os dias da brincadeira, qualquer um que passasse na rua corria o risco de ver-se obrigado a voltar para casa e trocar de roupa. Conforme a folia foi se desenvolvendo no Brasil, surgiram os limões-de-cheiro e laranjas-de-cheiro, que eram bolas de cera mais ou menos maleável, recheadas com água perfumada (ou não) e que estouravam ao serem atiradas contra um alvo. Junto com eles vieram bisnagas que permitiam esguichar água com mais precisão. Foi o quanto bastou para tirar o sossego até de quem ficava em casa. Os foliões passavam pela rua e atiravam os limões contra as portas e janelas das casas, atingindo os desavisados.

O entrudo era uma brincadeira democrática e com adeptos em todos os grupos sociais. Mas, a partir dos anos 1830, quando as elites brasileiras passaram a buscar na Europa, principalmente na França, uma referência de modernização dos costumes, o entrudo começou a cair em desgraça.


LIMÕES E BISNAGAS

A fabricação de limões e laranjas-de-cheiro era uma atividade à qual se dedicavam muitas mulheres pobres, como uma forma de complementar a renda da casa. De fabricação simples e caseira, os limões começavam a aparecer nas lojas da cidade já por volta de dezembro e também eram vendidos nas ruas em tabuleiros, por crianças da própria família ou pelos escravos, se a família os tivesse.

A primeira etapa da fabricação consistia em derreter cera de vela. Depois pegava-se um limão, espetava-se um cabo de madeira e mergulhava-se rapidamente na cera. O limão era mergulhado em água fria para que a cera endurecesse e pudesse ser cortada com cuidado, retirando-se o limão e deixando apenas um pequeno orifício para introduzir o líquido. De acordo com o historiador Oswaldo Cabral, os limões mais procurados eram aqueles “recheados” com tintura de alfazema e Água da Flórida, na época um perfume popular e de preço acessível.
O entrudo em uma casa rica do Rio de Janeiro em 1822. Gravura de Augustus Earle. Você nota os tabuleiros com limões de cheiro na cena?

À medida em que o século 19 avançava, começaram a se introduzidas as bisnagas. Inicialmente importadas, elas eram anunciadas como alternativas mais higiênicas e menos imorais. Ao invés de serem vendidas em tabuleiros nas ruas, eram comercializadas em estabelecimentos respeitáveis, como “Paraíso das Damas” e “Baptysta”, que ficavam lado a lado na antiga Rua do Senado, hoje Felipe Schmidt
.

“Cena de Carnaval”, aquarela de Jean-Baptiste Debret (1823).
A cena se passa no Rio de Janeiro e é possível ver tanto o tabuleiro com limões de cheiro quanto uma bisnaga, provavelmente importada.

A IMPRENSA ATACA O ENTRUDO

No século 19 Desterro teve um grande número de jornais, sendo que os mais fortes estavam ligados a dois grupos políticos: o Partido Conservador e o Partido Liberal, que se alternavam no poder na Corte (RJ) e disputavam as demais províncias do Império. Diferenças políticas à parte, ambos eram produzidos e lidos pela população mais rica e acabavam levando para suas páginas alguns discursos que refletiam os desejos dessa mesma elite não só para a política, mas para a sociedade. Assim, vemos nos jornais de Desterro, a partir dos anos 1850, uma grande campanha contra o entrudo, que caracterizava a brincadeira como anti-higiênica, não civilizada, imoral, atrasada e que podia, inclusive, ser fatal.

Em 1869, o jornal “O Mercantil” relatava algumas consequências nefastas do entrudo com o tom dramático dos jornais da época:
Bem tristes efeitos vi desse brinquedo: poucos entrudos presenciei em não acontecessem desgraças: – D. Iria apanhou um garrotilho[1] de que morreu. D. Guiomar acabou tísica[2] no fim de seis meses. Conheci uma D. Edwirges que, por levar um mergulhão dentro de um tanque, ficou doida furiosa, pois o sangue lhe subiu o cérebro. Uma minha comadre D. Tecla, escorregou em tão má hora que quebrou a coxa, andou toda a sua vida de muletas. (…)Havia um Braz de Noronha e Souza, perfeito cavalheiro e Sargento-mor de um terço, que ficou estuporado[3] depois de uma grande molhadela. Um meu primo morreu de inflamação do peito, outro primo esteve sacramentado[4].

[1] O mesmo que crupe, uma doença respiratória que ataca especialmente a laringe, causando dor, rouquidão e tosse áspera. Hoje é facilmente tratável.
[2] o mesmo que tuberculose
[3] Indivíduo que perdia a consciência após um trauma.
[4]O mesmo que desenganado, alguém que chegou a receber a extrema-unção. 

Em 1832, o Código de Posturas Municipais proibiu o entrudo e determinou multa e prisão para os infratores: 2 dias para pessoas livres, 6 dias para escravos. Ao longo do século, a lei foi sendo atualizada e reafirmada, com a inclusão de um artigo que previa punição específica para os fiscais que fizessem vistas grossas diante do entrudo (o que acontecia com certa frequência). Apesar do policiamento e das leis, a brincadeira resistia nas ruas da Ilha como uma prática popular, convivendo com os festejos organizados pelas Sociedades Carnavalescas, grupos que organizavam o Carnaval de rua dentro da ordem e dos bons costumes da elite. Para desespero da polícia e dos defensores da moral, o entrudo se fazia presente mesmo entre os rapazes de famílias ricas e era até estimulado em anúncios de uma certa loja…

Ao Paraíso das Damas
Ide bisnagas comprar;
Quando ruge o Zé Pereira
As moças deveis molhar.

Os hábitos do entrudo passaram a conviver com os zé-pereiras, uma nome genérico para algo próximo dos blocos como conhecemos hoje. Conforme começava o século 20, o entrudo perdeu força e as Sociedades Carnavalescas como a Tenentes do Diabo (1905) passaram a ser a principal atração do carnaval popular, em torno da Praça XV de Novembro.

(Do http://floripadazantiga.com/)

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