O Cutty Sark, um dos mais famosos clippers da era da rota do chá. Hoje é um museu em Londres.
Canal de Suez, o golpe final nos clippers
A última frota à vela em operação no mundo
Os barcos à vela dominaram os mares, desde tempos imemoriais, até a Revolução Industrial aposenta-los. Mas, se é sabido quando eles foram ultrapassadas pela tecnologia do vapor, ninguém sabe exatamente quando começaram. Já, sobre o último modelo de navio à vela, é fato notoriamente conhecido. O que não se sabia é: qual foi a última frota à vela em operação no mundo?
Os clippers, último modelo de navio à vela
Os últimos modelos de navios à vela, antes do vapor, foram os clippers. Os primeiros apareceram depois da Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775–1783), no início do século XIX. Os clippers de Baltimore eram escunas desenvolvidas na Baía de Chesapeake. Seu auge foi em 1843 como resultado da crescente demanda por entrega mais rápida de chá da China. Foram usados com sucesso na descoberta de ouro na Califórnia e Austrália em 1848 e 1851.
O declínio no uso dos clippers começou com a introdução gradual do navio a vapor. Embora os clippers pudessem ser muito mais rápidos do que os primeiros a usarem vapor como propulsão, eles dependiam dos caprichos do vento enquanto os vapores podiam manter um cronograma. O golpe final foi o Canal de Suez, inaugurado em 1869, que criou um grande atalho para navios a vapor entre a Europa e a Ásia, ao mesmo tempo em que dificultava a navegação à vela.
A partir deste ponto começa a era do motor. Aos poucos as velas foram sumindo do mar. Mas são raras as matérias sobre a última frota a usá-las.
Os bacalhoeiros portugueses
No início do século XIX os portugueses ainda usavam o modelo para pescar bacalhau nos mares boreais. A frota contava com mais de 300 lugres. Nos anos 50, restavam 32. Alguns, como o famoso Argus, fizeram suas campanhas anuais até 1970.
O lugre Avis. (Foto: navios e navegadores)
Conheça os Lugres
Em geral o comprimento era de cerca de 60 metros, largura em torno dos 9 metros, 4 mastros, e capacidade de carregar entre 900 e 950 toneladas de bacalhau salgado. A maioria tinha cascos de aço, poucos ainda eram de madeira. A frota dos anos 50 já incluía barcos híbridos, tinham um motor auxiliar além da velas. Cada um podia levar cerca de 60 pescadores.
O lugre Creoula, um dos ícones da pesca de bacalhau
O lugre Creoula, um dos ícones da pesca de bacalhau
Temporadas de pesca do bacalhau
As temporadas duravam seis meses. Os barcos saíam em comboio de Portugal e ilhas adjacentes, como os Açores, em abril; navegavam mais de 1.500 milhas até chegarem a São João da Terra Nova, capital da província do Labrador, onde começavam a pescar. Dependendo dos resultados ficavam por ali um bom tempo, ou subiam ainda mais, pescando no estreito de Davis, litoral da Groenlândia, já no círculo polar ártico. “Com sorte estariam prontos para voltar para casa em Agosto.” A saga foi registrada pelo escritor australiano Alan Villiers que, nos anos 50, se engajou a bordo do Argus e registrou em livro a difícil e perigosa pescaria.
Em vermelho S.João da Terra Nova. Mais acima, entre Gorenlândia e Passagem do Noroeste, o estreito de Davis. (Ilustração: wikipedia)
A perigosa pesca do bacalhau
Era uma atividade extremamente dura, em mares tempestuosos onde a neblina era uma constante. Os lugres não contavam com radares. Além de bússola, tinham apenas um rádio de comunicação. Os comandantes procuravam os bancos de bacalhau e ali fundeavam. No meio do nada. Em seguida, os dóris, pequenos barcos de madeira com fundo chato, e largos para guardar o pescado, eram lançados ao mar. Um pescador em cada dóri. Eram movidos a remo e tinham uma pequena vela auxiliar. Eles se afastavam do navio até perderem-no de vista, então soltavam suas linhas, às vezes com 600 anzóis
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Um pescador por dóri. Ao fundo, o lugre.
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Um pescador por dóri. Ao fundo, o lugre.
Pescavam por cerca de 12 horas ininterruptas. Não levavam colete salva- vidas, nem comida extra. “Os pescadores mais ricos tinham uma garrafa térmica com café.”
Os dóris se afastando dos navios. (Foto, Eduardo Lopes)
O trabalho durava 15 horas por dia. Os pequenos dóris eram lançados n’água às 4 horas da manhã. Pescavam até encher os barcos de tal modo que mal flutuavam. Na volta tinham o trabalho de processar o pescado, salga-lo e guarda-lo nos porrões. Isso quando não eram pegos por tempestades repentinas como acontece com frequência nas altas latitudes.
Quando vinham as tempestades os dóris voltavam apressados para os lugres. Primeiro, tinham que desembarcar o peixe. Depois, os pequenos barquinhos eram içados para o convés com um guincho a força de músculos. Villiers descreve uma destas ocasiões: “o lugre oscilava tanto, os mastros abanando como pêndulos contra o céu, que cheguei a temer que alguns dos dóris fossem esmagados pelo caso do navio”
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Um dori descarregando em dia de mar calmo. (Foto: Alain Villiers)
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Um dori descarregando em dia de mar calmo. (Foto: Alain Villiers)
Muitos dóris se perdiam, outros eram achados sem o pescador. Villiers diz que “em campanhas anteriores chegaram a encontrar dóris com os ocupantes mortos ainda a bordo”.
A pesca de bacalhau com arrastões
Alain Villiers conta que em 1920 chegaram aos bancos os arrastões franceses. Na década de 50 “havia mais de cem arrastões em atividade nos bancos, 44 franceses, 40 espanhóis e 26 portugueses”. O autor diz que os pescadores portugueses dos dóris ficaram inconsoláveis. “Com aquela quantidade de arrastões passando o pente fino, em breve deixaria de haver bacalhau, porque o fundo do mar estava sendo depauperado e os hábitos alimentares do peixe destruídos.”
Portugueses: os últimos a enviar uma frota de navios à vela
Numa passagem de seu livro, que bem poderia ser a final, Villiers escreve: “Estava escrito que tinham que ser os portugueses os últimos a enviar uma frota de navios à vela através do Atlântico Norte. Portugueses e noruegueses foram pioneiros das viagens longas neste oceano selvagem e perigoso”.
(Via https://marsemfim.com.br/)
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