O PROTETOR QUE MATA
Como um produto químico presente nos filtros solares esbranquiçou corais, mexeu no sistema endrócrino de peixes e caminha para se tornar o inimigo número 1 dos adoradores do sol
POR LETÍCIA GONZÁLEZ
Um espectro ronda o Havaí. Oleoso e esbranquiçado, ele abandona o corpo de turistas – são 8,3 milhões ao ano – e se espalha pelas águas, deixando uma camada lustrosa que reflete o sol. É o rastro de protetores solares, que preocupa o arquipélago desde que um estudo provou sua relação com a morte dos corais da região. A pesquisa comparou praias como Kapalua Bay, na ilha de Maui, frequentada por mil visitantes ao dia, a outras pouco exploradas, e concluiu: basta um pouco de protetor para desregular a saúde dos recifes.
Segundo o estudo, de 2015, o elemento nocivo é a oxibenzona, usada na fórmula de milhares de cosméticos, a maioria com fator de proteção solar, ou FPS. Ela agiria sobre as larvas de coral, que se encapsulam e morrem. As sobreviventes ficam incapazes de suportar o aquecimento das águas no verão e, feridas no seu sistema endócrino, procriam mal. O resultado é o embranquecimento dos corais, fenômeno já visto em outros países onde eles e turistas se encontram. “O ecossistema vai morrendo lentamente”, resume à Trip o coordenador da pesquisa, Craig Downs. No Caribe, calcula-se que 80% dos recifes, equivalentes marinhos das florestas tropicais, já se perderam.
Os dados soaram alarmantes o suficiente para que os senadores Kalani English e Will Espero propusessem banir filtros do tipo em todo o Havaí. Eles lançaram a ideia na sessão legislativa de 2017, encerrada em maio. Mas, entre debates sobre como aplicar a lei (pedir aos salva-vidas que controlassem os banhistas? Proibir a venda em farmácia?), o texto não foi para a frente. Os ativistas locais se voltaram então à comunidade com apelos para que “eduque” os recém-chegados. “Dá pra sentir o gosto de spray na boca se você vai a qualquer praia do Havaí”, diz Wilkie McLaren, que cuida do site Ban Toxic Sunscreens, pela proibição de filtros tóxicos. Nas lojas de surf, cremes à base de cera de abelha para uma proteção ecológica já são realidade.
Coral em Kahului Point, na ilha de Maui, no Havaí, em agosto de 2015 e, à dir., menos de três meses depoisCrédito: The Ocean Agency/XL Catlin Seaview Survey
A verdade é que o cerco à oxibenzona e a outros compostos de FPS, como o octocrileno, vem se fechando aos poucos lá fora, não apenas no Havaí. Os parques aquáticos Xel-Ha e Xcaret, paraísos familiares do snorkel em Cancun, no México, já confiscam frascos com essas substâncias, consideradas nocivas ao seu ecossistema, logo na entrada. Querem evitar que os químicos se depositem nas lagoas naturais e rios subterrâneos onde vivem os peixes exóticos que tanto encantam os turistas. Como alternativa, oferecem amostras biodegradáveis e uma lista de produtos aceitos.
Da pele pro mundo
Na última década, pesquisadores buscaram traçar o caminho que esses químicos fazem da nossa mão para o ambiente. A conclusão é que estão em rios, lagos e mares – sendo absorvidos pela fauna marinha – e na água de beber – sendo (re)absorvidos por nós.
“Distúrbios hormonais podem resultar de alta exposição, como alguém usar protetor solar todos os dias e em excesso. Crianças estão em risco”
Karl Fent, pesquisador
Um estudo de 2013 recolheu golfinhos encontrados mortos na costa brasileira para buscar, pela primeira vez, a presença de FPS no corpo de mamíferos marinhos. De 56 animais estudados (da espécie toninha, ou franciscana, ameaçada de extinção no Brasil), 21 tinham concentrações de octocrileno no fígado. Em 2015, pesquisadores da Unesp analisaram amostras de água em estações de tratamento do interior de São Paulo. Viram que, depois de tratada, a água ainda tinha químicos típicos de filtros solares, sobretudo oxibenzona. Em Araraquara, a concentração diminuiu no inverno e aumentou no verão, obedecendo à flutuação no uso dos protetores (o máximo encontrado foi 115 nanogramas por litro). O que isso significa para a saúde dos rios e da população é algo que os próximos estudos terão de responder. “Ainda que encontradas em doses baixas, não há indicação de que as substâncias não possam causar dano ambiental ou humano, uma vez que níveis seguros de exposição ainda não foram determinados”, escrevem os autores.
Bagunça interna
A oxibenzona também atende pelo nome de benzofenona-3, ou BP-3, e a lista de versões não para por aí (no rótulo pode vir, por exemplo, como 2-hidroxi-4-metoxibenzofenona). Ela age absorvendo os raios solares e, assim, evita queimaduras na pele. Consta na lista de princípios ativos aprovados pelo FDA, a agência reguladora americana, e também no Brasil, pela Anvisa, com limite de 10% da fórmula. O que preocupa pesquisadores e ativistas é seu poder de desequilibrar hormônios. Isso é sabido desde 2006, quando o pesquisador Karl Fent e sua equipe comprovaram, na Suíça, que o receptor humano do estrogênio, um hormônio feminino, é ativado pela oxibenzona. “É preciso caminhar na direção de outros filtros UV que não tenham risco de afetar o sistema endócrino”, diz Fent. “Pelo menos o uso de BP-3 deveria ser restrito.”
Na última década, Fent e sua equipe se dedicaram a isolar os químicos mais comuns nos protetores solares e ver como reagiam em organismos vivos. Além do receptor humano, usaram peixes-zebra como cobaias. É que, além do sucesso que faz em aquários domésticos com o nome de paulistinha ou peixe-bandeira, essa espécie é um excelente organismo-modelo para estudos sobre doenças humanas. Neles, o time de Zurique encontrou reações claras à oxibenzona: os machos ficam com mais hormônios femininos, menos masculinos e perdem suas características sexuais. É um indício de que, em concentrações ainda desconhecidas, o mesmo poderia ocorrer conosco? “Em humanos, distúrbios hormonais podem resultar de alta exposição, como alguém usar protetor solar todos os dias e em excesso. Particularmente, crianças estão em risco”, afirma à Trip o pesquisador.
Não é o caso, portanto, de fugir para as montanhas – até porque, se elas ficarem perto de uma plantação de cana-de-açúcar, os agrotóxicos da lavoura permeados na água terão efeitos já comprovados sobre seus hormônios. Mas o conhecimento a respeito dos filtros químicos e seu potencial endócrino se avoluma. O suficiente para apresentar uma pressão à indústria e fazer crescer outro filão, o dos filtros físicos. Antigamente conhecidos como bloqueadores solares e usados por surfistas e crianças cujas bochechas não se opunham à pintura facial, eles voltam ao mercado com um novo apelo. Funcionam ao contrário dos filtros químicos: em vez de absorver os raios para evitar queimaduras de pele, os refletem. Seus princípios ativos mais comuns são óxido de zinco e dióxido de titânio – que, para evitar o efeito grudento, alguns fabricantes manipulam em nanopartículas, o que faz com que penetrem rapidamente no sangue e renovem o moinho de efeitos desconhecidos para o consumidor. Tá difícil? Use um chapéu.
(Do https://brasil.elpais.com/)
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