quarta-feira, 15 de julho de 2015

MAR DE LETRAS




Eu a Canoa Caiçara

Conto de Fátima de Souza (Autora) do Livro Arrelá Ubatuba

Logo que nasci, percebi que não seria fácil a minha condição de vegetal. Arraigado ao solo, vergando ao sabor do vento, o medo me cercava. Mesmo sabendo que podia crescer e ser frondoso, horrorizava-me a possibilidade de ficar nanico como as minhas primas samambaias. O que só poderia acontecer se a luminosidade, elemento imprescindível ao meu crescimento corporal, fosse insuficiente.
Então eu cresci às sombras da mamãe louro. Árvore copada e forte que me resguardou até eu ter a minha maioridade. Fazia-me frente às infames tempestades devoradoras de eitos e mais eitos. Ela me contava que o maior perigo que corríamos era sermos descobertas por um bicho muito dependente de nós. Eles podiam pensar, mas eram desprovidos de conhecimentos básicos que lhes permitissem satisfazer as suas necessidades sem destruir os outros. Um animal igual aos outros, não fosse a ambição de poder. Para tanto, formatavam e construíam geringonças para dominar. E um desses apetrechos era o tal de machado, uma coisa medonha. Uma arma que vai cortando na pancada. Leva-nos à morte aos pouquinhos. Isso ou o fogo dos infernos, quando não querem nos aproveitar.

Mamãe havia sido ceifada já há alguns anos; um raio lhe tirou a vida. Cresci num lugar privilegiado, no alto da serra de onde eu sempre avistava o mar mudando de cores. Via as praias, tão branquinhas e cheias de gente que mais pareciam saiotes de rendas. Certa vez um gavião me contou que a visão que ele tinha lá do alto fazia os morros parecerem gigantes adormecidos, cobertos por colchas verdinhas de mato e molhadas nas pontas pelas ondas do mar.

Algumas vezes aquela rotina mexia comigo. Eu namorava umaingazeira de macacos, bonitinha, muito raizeira e folhuda. Passávamos o tempo nos divertindo, atirávamos frutinhas no chão querendo acertar algum passante por ali. Fazer o quê? Tudo ao meu redor não disfarçava a minha curiosidade que só aumentava a cada conversa que ouvia contada pelos pássaros que povoavam a minha cabeça. Conversas de outros lugares, outros sabores, outros odores que me deixavam doidinho.

Numa manhã raiada qualquer, meditava sobre a vida que estava levando. Veio uma revolta no meu peito que me levou à histeria. Ansiava por um porvir de glórias e explodi num clamor ao infinito:

- Não aguento mais viver assim. Quero muito mais, quero ir lá embaixo. Quero banhar-me no mar. Quero provar o sal das suas águas. Quero ser gente. Não aguento mais essa vidinha besta de ser árvore igual a todo mundo!

Meu pedido ecoou na imensidão, batendo de encontro com as leis da mata e causando ira. Então, num ruidoso movimento dos mais velhos fui sentenciado.

-Filho ingrato! Blasfemas contra a tua própria natureza, pois sereis escravo da sua própria ambição. Sereis instrumento de conquista, de honras aos méritos dos outros. Sereis abandonado por aqueles que te usarem e, num canto qualquer irás ficar quando não servires mais. A cada intempérie se verás mais debilitado, dependerás de beneméritos para os seus curativos e não terás ninguém a quem reclamar.

Duas luas se passaram até aquele quarto de dia quando a selva se alvoroçou indicando a presença de estranhos. Eram eles. Homens munidos de machados e cordas; em torno de mim se juntaram. Todos me olhavam com satisfação: haviam encontrado o que estavam procurando.

A primeira pancada, de tão forte, me fez desfalecer de tanta dor. E a cada pancada, em ritmo torturante, foram tirando a minha vida. De raiva, resisti até cair de vez. A profecia se cumpria. Meu tronco foi lavrado ali mesmo. Fui rolado morro abaixo sem dó nem clemência. Machucado e cheio de lama cheguei à planície. Medido, arrumado, alinhado...e logo retomaram a minha lavra. Paulatinamente fui ressurgindo, ressuscitando com uma nova cara, outro estilo, outra identidade. Que peça o destino me pregava! Estavam fazendo de mim uma canoa! Para mais pecados, deram-me um nome de mulher grande. Acho que foi devido ao meu tamanho: nove metros e vinte centímetros de comprimento. Imagine se a ingazeira me visse assim, logo eu que sempre fui machista com ela. Besteira! Mero detalhe! Tudo não fazia mais diferença. Quando fiquei pronto, fui lançado ao mar. Golfadas de água pesada com sabor de urina de bicho me lavou inteiro. Era junho e o frio da água me fez tiritar. E tome força daqueles cinco remadores que se apossaram de mim. Ansiosos pelo meu melhor desempenho gritavam:

- Vamos lá, menina! Toda força à frente!

Meio acanhada, cambaleei para bombordo, puxaram-me para boreste, equilibrei-me, tomei prumo. Deslizei mar afora até a cidade de Santos. Três dias de pura emoção e aventura. Não parei mais. Fui estrela em todas as competições de canoa. Fui à Paraty, virei atração e notícia em todos os jornais.

O tempo passou e eu não percebi. Outras novidades foram surgindo e tirando a atenção que era dada para mim. Caí no descaso igual a todo ancião neste país. Abandonaram-me no tempo atrapalhando a vida das pessoas. Tive que me resignar na condição de coisa passada.

Aí a política mudou, todos os grande valores foram revistos e se lembraram de mim. Um benemérito me recolheu. Providenciaram uma reforma para recuperar a minha aparência corroída pelo tempo, fizeram alguns enxertos com outra madeira, maquiaram-me com gesso e cola. Arranjaram para mim uma aposentadoria por invalidez. Não me exercito mais; virei atração para turista ver.

Sob um teto, de frente para o mar, estou estático. Vivo olhando para ele que me trouxe tantas glórias. Do outro lado, lá longe, vejo a serra onde ainda devem estar os meus parentes. Entre eles estou eu no vazio da solidão, carregando o fardo da história, sofrendo a dor da saudade.

Na alma trago o orgulho de não ser anônimo e ver meu nome assinado: “Canoa Maria Comprida” para os turistas, ou simplesmente Camacom, para os amigos que me visitam.


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