terça-feira, 16 de janeiro de 2018

MULHERES DO MAR

Foto Rafaela Martins / Agencia RBS
Pescadora de Balneário Camboriú é personagem de pesquisa feita por antropóloga da UFSC
Raridade em uma atividade tradicionalmente masculina, mulheres da pesca são invisíveis à lei

Rosa da Silva, conhecida como Dona Rosinha, tem 64 anos e mora em Balneário Camboriú. Largou a escola na terceira série para trabalhar descascando camarão e aos 18 anos casou-se com um pescador. Depois de ter quatro filhos, Rosa percebeu que o companheiro passava dificuldades para garantir o sustento da família e ofereceu ajuda. Quando ele a questionou se ela seria capaz de acompanhá-lo na pesca, Rosa, já aos 40 anos, não hesitou. 

A história de Dona Rosinha foi retratada na tese de doutorado da antropóloga Rose Mary Gerber. A pesquisa, feita na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acompanhou pescadoras envolvidas na pesca artesanal no Litoral do Estado.

O trabalho revela a relação das mulheres com o mar, desde a necessidade financeira até a questão de fuga e terapia. Ao retratar a vida de mulheres nas cidades de Laguna, Florianópolis, Governador Celso Ramos, Balneário Camboriú, Barra do Sul, Araquari, São Francisco do Sul e Itapoá, a antropóloga percebeu um problema grave que existe no reconhecimento das pescadoras. 

— Existe uma invisibilidade dessas trabalhadoras, principalmente em relação à política social. O mais grave é que elas têm dificuldades de reconhecimento pelo Ministério da Pesca e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como pescadoras para poder se aposentar. Elas têm dificuldade de acessar a esses direitos, pois a alegação é de que não existem mulheres com essa profissão — revela. 

Entre os maiores obstáculos está justamente a questão da aposentadoria. Ao acompanhar um das mulheres em um posto do INSS, Gerber presenciou um atendente que questionou a profissão da mulher, solicitando que ela mostrasse os documentos do marido pescador. 

— O que acontece se o marido não é pescador e sim um professor? Ou se ela não tiver marido? Ela não terá ou terá dificuldade de acesso a esse direito, pois não é considerada — questiona Gerber. 

Para a pesquisadora não há diferença entre o trabalho da mulher e do homem pescador. De acordo com a doutora, os entrevistados para a sua tese revelaram que, na pesca embarcada, o trabalho é dividido por igual, independente do sexo. 

— Quando pedi para um dos pescadores descrever o trabalho da mulher, ele falou, como um elogio, "ela é um homem, é um animal, não falta, não reclama, tem o jeito para a pesca. É nota mil" — conta. 

Dona Rosinha concorda com os entrevistados de Rose Mary. 

— Não existe diferença entre o meu trabalho e o do meu marido. É tudo dividido igual por aqui — afirma Dona Rosinha.

Antropóloga diz que rotina das mulheres da pesca é pesada

Durante 13 meses, Rose Mary Gerber ajudou a puxar rede, a limpar e embalar os peixes

Pesquisa desenvolvida pela antropóloga Rose Mary Gerber, Mulheres e o Mar: uma etnografia sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal no Litoral de Santa Catarina, foi desenvolvida durante 13 meses em oito cidades. Nesse período, Rose vivenciou o cotidiano de 22 pescadoras, foi para o mar, ajudou a puxar rede, a limpar e embalar os peixes, e constatou uma rotina de trabalho pesado, variado, invisível. Mas ao mesmo tempo apaixonante, como relata Rose em sua tese. 

A pesquisa foi orientada pela professora Sônia Weidner Maluf e teve apoio do Instituto Brasil Plural (IBP), da Capes e da Epagri, onde Rose trabalha como analista técnica. A tese está em fase de revisão e em breve deverá tornar-se um livro. Ela também realizou um documentário em vídeo, reunindo entrevistas e depoimentos. 

Você relaciona três tipos de atividades das mulheres na pesca. Como é a diferença entre eles? 

Não quis estabelecer uma classificação rígida, mas na pesquisa observei três formas da mulher de ser pescadora. Uma delas é das que ficam em terra e trabalham no descasque, na evisceração, na filetagem de peixe, desconchamento de marisco, limpeza, beneficiamento e venda do pescado. Outra forma é a das que atuam na coleta de berbigão, à beira do mar. A terceira forma é a das embarcadas. Neste caso considerei aquelas que saem todos os dias, na pesca de peixe e arrasto de camarão, em jornadas de quatro a 16 horas por dia no mar. Dentro das embarcadas também incluo as que denominei de stand-by. Ou seja, não saem todos os dias, mas estão sempre prontas, e são acionadas pelo marido de um dia para o outro para embarcar. Ao chegar em terra, marido e esposa dividem-se na tarefa de puxar o barco e realizar as atividades, como limpeza e preparação do peixe para a venda. Como eles lidam com um produto fresco, todo o trabalho é ágil, tudo precisa ser resolvido imediatamente. Além da rotina na pesca, o trabalho da casa é todo delas, que ficam até tarde da noite para lavar roupa, arrumar casa, cozinhar. 

E como elas fazem quando têm filhos pequenos para cuidar? 

O casal entra em consenso e elas ficam em terra durante a fase de crescimento da criança. Elas se concentram no trabalho em terra, enquanto o marido arruma um camarada para trabalhar no barco. Outro caso em que houve esse consenso foi quando uma delas teve um problema pulmonar, que seria agravado pela friagem do mar. 

Em que o difere do trabalho realizado pelos homens? 

Não há diferença entre o trabalho da mulher e do homem pescador. Eles contam que, na pesca embarcada, tem a parte do chumbo e da cortiça, que fazem parte da rede. O chumbo é a parte mais pesada e a cortiça é a mais leve. O trabalho é dividido por igual, quem estiver mais próximo do chumbo é quem irá puxar, seja homem ou mulher. 

O que é ter corpo para pesca? 

É não ter enjoo no mar ou, se enjoar, conseguir controlar. Segundo elas, tem que ter força e jeito, tem que ter paixão pela pesca. Eu perguntei como é a relação com o mar e elas descreveram que é uma relação de amor, paixão e vício. Uma das pescadoras que conheci, a dona Paulina, com 70 anos, falou "eu preciso ir para o mar todos os dias, é meu vício". Ela começou a pescar com oito anos. 

Como elas aprendem o ofício? 

A maioria delas aprendeu a pescar com o pai, aos oito, 10 ou 12 anos de idade. Algumas começaram depois de se casar. Nesses casos, ou o marido, pescador convenceu a mulher a trabalhar com ele ou a própria mulher se sentiu atraída pela pesca. A forma de aprendizado mais comum é de pai para filha. 

Na sua pesquisa, você passou vários meses com as famílias das pescadoras. Como era a sua rotina? 

Geralmente eu ficava na casa da pescadora. Mas quando percebia que já estava há muito tempo na rotina delas, eu alugava uma quitinete ou um quarto em hotelzinho próximo e ficava por lá, para preservar um tempo meu e um tempo delas, para não ficar direto e invadir a privacidade, e preservar a relação. 

Das três atividades da pesca, existe alguma que tenha mais status, que seja mais valorizada? 

Pude observar que as pescadoras embarcadas têm mais status. Você percebe isso porque elas são admiradas, por pescadores e por pescadoras que trabalham em terra. Para as que trabalham em terra também existe mais dificuldade no processo de reconhecimento. É como se o trabalho na pesca fosse uma extensão do trabalho doméstico. 

Na sua tese você propõe uma redefinição do conceito de pescador e de pesca. 

Sim, pois pescador é definido, por exemplo, nos dicionários de língua portuguesa, como um "substantivo masculino singular" e o significado de pesca é "retirar os produtos do mar, de lagoas, de rios". Busquei, com a tese, mostrar que existem pescadoras mulheres e também que todo o processo de retirar, limpar, eviscerar, transformar e vender, tudo isso é a pesca. É a extração de produtos do mar, da lagoa, do rio, até a preparação para a comercialização. 

Existe diferença de renda entre homens e mulheres pescadoras? 

A maioria das pescadoras atuava com seus maridos. Nesses casos, a renda é da família, não existe separação do dinheiro dele e do dinheiro dela. O trabalho entre casal representa uma economia de renda, pois, quando a mulher trabalha como camarada do marido não há saída de dinheiro. Quando é preciso pagar um camarada, aí existe custo a mais. Uma das pescadoras que pesquisei trabalhava com o irmão e mais três camaradas. Nesse caso, a renda era dividida em duas partes, metade da embarcação e da rede, e a outra metade subdividida em partes iguais para a tripulação. Então, não existe pagamento diferente por ser mulher. 

Existe uma articulação entre as mulheres pescadoras dos diferentes locais? 

Não, elas não se conhecem pessoalmente. Duas eu consegui apresentar, uma de São Francisco do Sul, a Mãezinha, e outra de Barra do Sul, a Neneca. Tornaram-se amigas. Uma visita a outra. Todas puderam ver as fotos e vídeos que eu ia fazendo durante a pesquisa. Foi uma maneira de elas se conhecerem.

Pescadora em Balneário Camboriú, Dona Rosinha relata vida sofrida
Trabalho na pesca começou ainda na infância, junto com o pai

Rosa da Silva, a Dona Rosinha, moradora do Bairro da Barra, em Balneário Camboriú, é uma das personagens da tese defendida pela antropóloga Rose Mary Gerber, da UFSC, sobre as mulheres pescadoras no Estado. Confira o depoimento de Dona Rosinha à pesquisadora: 

Eu sou a Rosinha, que é assim que me chamam. Sou casada com Aparício Ramos da Silva, que está hoje com 64 anos. A gente chama ele de Parício. A gente se acostumou nesse ritmo. Eu acho que se for para botar alguém da cidade para fazer o que eu faço, não faz porque eu estou acostumada neste ritmo desde os oito anos de idade. 
Nós estudávamos de manhã e à tarde nós descascava camarão. Eu estudei até a terceira série. O meu marido também. Passamos para a quarta, mas os pais não deixaram continuar porque nós tínhamos que cuidar dos nossos irmãos porque eles trabalhavam na pesca e na roça. 
Das filhas, eu sou a mais velha. Comprei o meu enxoval, tudo com o dinheiro do camarão. Eu casei com 18 anos. Aí, com 19 eu tive o primeiro filho que hoje é mestre de barco em Santos. Depois, quando o menino estava com um ano, um mês e dezoito dias, ganhei a menina. Quando a menina fez três anos e seis meses, eu ganhei o Oziel, que é esse que está pescando com o pai. Quando esse estava com dois anos e dois meses, eu ganhei o outro, o Oscar, esse trabalha sozinho numa embarcação. 
O meu marido trabalhava no camarão. Depois começou na rede de malha. Daí, ele botou rede junto com o meu cunhado. Depois, o meu cunhado não veio um dia. Ele ficou apavorado e eu falei: então vamos que eu vou contigo. Ele disse: mas tu vás enjoar. Eu disse: não, eu não vou enjoar. Aí, fomos lá, colhemos a rede, arriamos. Voltamos. Cheguei. Fui arrumar todo o peixe. Limpamos, congelamos o peixinho. 
Eu não sei direito que idade tinha. Eu acho que ia fazer 40 anos quando comecei com ele. Eu pesquei 22 anos com ele. Dos 40 aos 62. Até agora. O meu cunhado não apareceu mais, e eu fiquei pescando direto com ele. Mas a vida do mar, quando o mar está manso, é tudo muito bom. Quando vira o tempo! 
Agora, com o meu rapaz, nós saíamos duas horas. Meu marido estava no hospital. Enquanto ele estava no hospital eu ia com o meu filho pra fora. Daí nós saía de casa, eram duas da manhã. Aí, sete horas, oito horas, nós já estávamos em casa. Colhia tudo no escuro, com luz porque ele botou luz. 
No camarão é na hora que as pessoas querem ir. Hoje eu me levantei era três horas. Levantei, cozinhei o arroz, fiz o café, fritei carne pra eles levar, arrumei o baldinho da comida, tudo. Daí eram quatro horas, eu fui ali chamei ele: nego, não vais pra fora já. E quando eu vou junto é a mesma coisa, eu que levanto primeiro para deixar tudo pronto. 
Hoje, os dois estão lá fora pegando peixe. Eu estou em casa: estou limpando, empanando, embalando, pesando. Se nós chegar oito horas, já chego aqui, tomamos mais um cafezinho, eu vou limpar o peixe, de tarde eu já vou congelar, tudo individual. E se é para empanar, no outro dia eu não limpo. Eu vou empanar aqueles que eu limpei um dia antes. Depois eu vou congelar individual. 
Quando ele está em casa, ele me ajuda. Agora ele quase não me ajuda assim porque nós temos uma máquina de limpar, de consertar. Aquela lá. 
O pai era pescador. Nós descascávamos o camarão, ficava até tarde à noite descascando camarão porque naquela época não tinha gelo, era tudo cozido. Aí, nós descascávamos camarão na salga. A mãe era mais de roça. Ela gostava muito era de roçar, capinar, colher. Era mais com o meu pai. Para embarcar, foi com o meu marido. Eu disse, vou, e fui, e pronto. Não enjoei nada. 
Sábado e domingo eles também vão para o mar. Não tem sábado ou domingo. É a semana inteira. Desde que tenha produção, eles não param. Eles não parando, eu também não paro. Hoje de manhã estou parada; à tarde eu tenho que pegar o carrinho (de mão) que está lá no porto, vou lá pegar gelo, trago, boto aqui, levo o carrinho para o porto. E assim vai, a luta de cada dia. Isso porque eu dormi e perdi a hora. Dormi até as oito e eu não gosto de acordar tarde porque me atrasa. [então a senhora dorme quantas horas por noite? Vai dormir que horas à noite]. Ah, depende. Se eu sair da salga ali umas seis horas, sete horas por ai. Aí já faço a janta, já estou lavando a louça, quando termino, tomo um banho. Jantamos. Aí, já limpo a louça de volta. Vou me deitar, é umas dez e meia, onze horas. Durmo umas quatro, cinco horas. 
Me sinto bem. Eu não tenho canseira, nega. Graças a Deus que eu não tenho canseira. Eu gosto dessa vida da pesca.

(Do O SOL DIÁRIO - www.clicrbs.com.br)

Um comentário:

marciele de paula disse...

eu tambem faço parte dessas mulhers embarcadas e vou todos os dias... mas amo q faço ,não trocaria por nada !