terça-feira, 6 de novembro de 2018

MAR DE ILHAS


ILHA DO ARVOREDO

Por Virgílio Várzea


"Por duas ou mais vezes visitamos essa ilha, que demora a 33 milhas da capital, excursionando por toda ela, como ainda sucedeu em 1887, quando ocupávamos o cargo de secretário da Capitania do Porto da província. Dessa última visita guardamos ainda no espírito a agradável impressão que vamos tentar reproduzir ao leitor nos períodos abaixo." Virgílio Várzea

As ilhas e ilhotas que cercam à de Santa Catarina são em número superior a trinta, e delas se destaca, como a maior e mais considerável, a do Arvoredo, situada à entrada do norte, quase a duas léguas da ponta do Rapa. Esta ilha tem de extensão duas milhas, por uma na sua maior largura: é, como o próprio nome o diz, coberta de espessa e alta vegetação, em muitos trechos verdadeiras florestas seculares onde se encontram excelentes madeiras de lei, das quais se extraiu, outrora, se bem que simplesmente para experiências, material para a construção no Desterro de um iate ou navio de alto bordo. Deserta até certo tempo, a ilha é hoje habitada pelo pessoal do farol e suas famílias, e frequentada sempre por canoas e baleeiras que, saindo das proximidades do continente e da Ponta das Canas, Canavieiras e Ingleses, ali se juntam de inverno, para a pesca da enchova, que vai de junho a setembro.

Por duas ou mais vezes visitamos essa ilha, que demora a 33 milhas da capital, excursionando por toda ela, como ainda sucedeu em 1887, quando ocupávamos o cargo de secretário da Capitania do Porto da província. Dessa última visita guardamos ainda no espírito a agradável impressão que vamos tentar reproduzir ao leitor nos períodos abaixo.

Seriam sete horas da manhã, quando o Lomba, pequeno rebocador da nossa marinha de guerra ao serviço da Capitania do Porto, entrou a colher as amarras à baía do sul, junto ao antigo forte de Santa Bárbara, no ancoradouro do Desterro. Tinha cessado o garoar de um dia chuviscoso, sem o brilho de ouro do céu, que, pardacento, vertia uma claridade branda e vaga, da tonalidade uniforme das meias-tintas. Uma forte mancha de azul lavado e nítido cintilava ao longe, na linha do horizonte, para as bandas do sul; e. em redor, as montanhas altas, frescas e úmidas na sua verdura escura, estendiam sombras angulosas, empastadas, nas águas mansas da baía. Havia calma, uma calma de boa monção, que dominava os ares espalhando-se por toda a natureza numa paz de sono.

O vapor arrancou, por fim, num ruído mecânico, aproado ao norte, afogado numa espuma alvacenta. À proa, o Estreito oferecia ampla passagem para a baía do norte, ostentando, à direita, no alto de sua colina insular, o Cemitério Público, de um aspecto funerário na brancura dos seus túmulos, olhando o mar por entre as aleias solitárias dos ciprestes esguios; à esquerda, e em contraste bem vivo, a casaria do arraial da Passagem, com os seus caminhos animados pelo trânsito contínuo dos que demandam diariamente à Ilha, as paredes alvejando alegremente sobre um fundo de ramarias silvestres, nessas lombadas de coxilhas que vão morrer às Capoeiras. Depois, a Praia de Fora, S. Luís, a Pedra Grande e toda a curva e povoados do continente fronteiro. Mais além os Guarazes, Cacupé, Santo Antônio e os dois ilhotes dos Ratones, colocados em linha, atrás um do outro, como quem caminha em atalho. E ainda mais longe — a Ponta Grossa, Santa Cruz, a ilhota dos Franceses e Canavieiras, com o frontão da sua igrejinha triste espiando o mar azul, de cima de um outeiro florido, que termina em rochas altas onde as vagas escumilham.

Fora de pontas, isto é, para além da barra, o mar cava-se pouco e pouco, e ondas transversais sacodem o vapor num movimento de berço, cadenciadamente. Nós íamos na tolda, observando todas as saliências e reentrâncias da costa, o seu alvo e pitoresco contorno, tirando parecenças, comparando os sítios litorais, as praias belíssimas, e entretendo-nos por minutos, às vezes, com o dorso negro dos botos, que seguiam o navio, cambalhotando à superfície das ondas. De repente, ouvimos uma voz de comando: — "Proa ao Arvoredo!"
E olhando o horizonte ao largo, velado de cerração, pudemos descobrir vagamente essa ilha, pondo um tom indeciso de chumbo através da neblina. À proporção que avançávamos, porém, a ilha se detalhava, semelhante a uma monstruosa tartaruga negra, cuja cabeça o perfil aguçado e vertical do farol armava de um grande chifre.
Uma hora depois, lançava-se âncora no Saco das Balas ou Porto do Sul, em frente ao rancho onde se abriga a embarcação que liga, uma vez por mês, esse pequeno torrão de terra isolada do continente, do Desterro, das povoações mais próximas da parte setentrional da Ilha de Santa Catarina. Nesse ancoradouro, manso e abrigado dos ventos do norte, mas sempre em grande ondulação, porque a ilha não possui pronunciadas curvas de costa ou salientes pontas protetoras que impeçam o embate dos vagalhões do largo — o nosso desembarque efetuou-se perfeitamente, sobre pequena rampa assente em uma acumulação de pedras elipsoidiais ou esféricas, estas últimas muito semelhantes às antigas balas de artilharia e encontradas aí em quantidade extraordinária, de onde o nome da minúscula enseada.

Sobre a rampa acha-se colocado o aparelho de vigas fortes, denominado tecnicamente carreira, pelo qual é puxada a virador e por meio de um guincho, para um rancho pousado no alto, a dez metros do nível do mar, a baleeira do serviço. O lugar onde está o rancho foi preparado na escarpa abrupta e ocupa unicamente a área indispensável à embarcação: não fora isso, esta seria arrebatada facilmente pelos temporais do sul, cujas vagas vão rebentar muitas vezes nessa altura, impedindo a comunicação com a capital e os povoados vizinhos por dias e dias, pois o Arvoredo, exposto como está aos ventos de todos os quadrantes, oferece-lhes apenas abrigos parciais.

É desta espécie de pequeno cais que parte o íngreme e pedregoso caminho que vai ter ao farol, por onde vagarosamente fomos subindo até 76 metros de elevação. Dessa altura, onde está o pequeno terrapleno da torre com a casa dos faroleiros ao pé, domina-se o imenso e suntuoso panorama do alto-mar, que faz despertar dentro em nós o desejo de aventurosas viagens ao largo. Quem olha daí para oeste, fica comovido e saudoso, vendo imergir-se à distância o azulado melancólico da Serra do Mar, correndo de norte a sul, quase beirando o recortado das costas. Para leste dá uma profunda ideia de liberdade e a emoção das quilhas errantes, perdidas no deserto das águas, a linha côncava e sem fim do horizonte, convidando a vogar... Nesse rumo, à distância de duas milhas, eleva-se a Deserta, uma ilhota cinzenta, com pouca vegetação, desabitada, rochosa.

Após um ligeiro almoço, onde havia peixe fresco — o belo peixe do Arvoredo — pescado momentos antes, almoço que foi servido na varanda arejada da casa dos faroleiros, cujas janelas abriam alegremente para o terreiro, onde se erguia uma vegetação rendilhada de fetos e capoeiras, por entre a crista e o bojo musgoso de uma amontoação de penedos, enquadrando nas abertas trechos planos do mar verde; após o almoço saímos a excursionar pela ilha, registrando insignificantes arranhaduras ligeiras, quando a inacessibilidade das rochas nos interrompia a marcha, ou se opunha à colheita das lindas orquídeas azuis, vermelhas, amarelas, ou cor-de-rosa.

Fomos até ao Porto do Norte, distante pouco mais de dois quilômetros quase na outra extremidade da ilha, único ponto do Arvoredo onde se encontra a fina e branca areia das praias. Este é o sítio em que, quando reinam os ventos do sul, atraca a baleeira para fazer o desembarque dos mantimentos do pessoal, bem como dos sobressalentes de consumo do farol. Isto dá-se em geral no inverno, porque no verão, com o nordeste que sopra seguidamente, a praia não permite atracação. Assim este porto, como que lhe fica em posição oposta, forma os dois únicos pontos acessíveis aí nas duas quadras do ano.

Chegamos depois até à Ponta do Letreiro, onde diz a tradição existirem, gravados em uma pedra, alguns caracteres indicando o segredo de avultados tesouros, enterrados na ilha durante os séculos XVI e XVII, pelos piratas ou flibusteiros que iam ao Mar do Sul ou cruzavam nas costas do Brasil. Semelhantes histórias não passam de verdadeiras lendas de riqueza e cobiça, nascidas de certo do deslumbramento causado em as nossas primitivas populações pela profusão de ouro e prata arrancada pelos portugueses e os "aventureiros" espanhóis, nos tempos das explorações interiores do Brasil e regiões ocidentais da América do Sul, às celebradas minas de Cuzco e de Ouro Preto. E tanto assim é, que iguais narrações de misteriosos tesouros enterrados envolvem uma outra ilha da costa catarinense, como a do Xavier por exemplo, e envolvem ainda muitos outros sítios do Brasil, e com popularidade universal quase, o nosso ilhéu deserto e longínquo da Trindade, onde, segundo consta, até meados deste século, alguns especuladores europeus desembarcaram, por vezes, ocupando-se durante semanas a escavar as pequeninas praias que ali existem ou a esquadrinhar avidamente as furnas e interstícios das rochas, atrás dessas riquezas fantásticas. Em outro tempo também, conforme é sabido, algumas pessoas do Desterro, munidas do competente roteiro (que não falhava nunca nesses assuntos!) bateram todo o Arvoredo, em procura do "tesouro oculto"; mas embalde o fizeram, porque tal riqueza jamais apareceu.

Em seguida tomamos o caminho do litoral de leste, onde afirmam existir uma furna de pedras denominada a Gruta do Monge, a qual se diz ficar à meia encosta do monte mais alto da ilha, que mede 290 m. Esse pendor é abrupto e agreste, inacessível quase, e cheio de socalcos rochosos, levantando-se em cabeços por entre a vegetação poderosa. Parando, depois de alguns passos, no meio do declive em caos, como os das rochas vulcânicas, mas vestido de fofos densíssimos de verdura luxuriante logo acima da linha da costa, a bem dizer reta desta banda e toda em penhascos a pino, onde ruge e quebra o mar incessantemente, em revoltos vagalhões — tivemos de retroceder, renunciando, a contragosto, visitar esse lugar curioso e retomando a picada que conduzia ao farol.
Algumas palavras porém sobre a Gruta do Monge. Este nome provém de haver habitado, há muitos anos, e durante meses, contam, um homem que de repente aparecera na ilha e que se dizia "andava fazendo vida santa". Segundo a narração corrente dos habitantes de Canavieiras e da Ponta das Canas, que tiveram ocasião de vê-lo, era ele um venerando ancião, de alta estatura, vestido com um burel remendado, e de longas barbas brancas. Souberam da sua presença ali por uma fogueira que viam arder todas as noites naquela parte da ilha, ao tempo só frequentada por pescadores. Curiosos de verificarem o que seria, muitos roceiros abastados, como os tripulantes das lanchas e canoas de pesca, abordaram o Arvoredo de dia, e, entrando a percorrê-lo no local em que o fogo era visto encontraram o monge, que os recebeu com afabilidade e carinho. Além das rezas que ensinava, o homem dava remédios para certas moléstias e sabia curar por benzeduras. 

Os roceiros, como é natural, o ficaram desde logo adorando. E, dentro em pouco, uma peregrinação de doentes e devotos, que eram conduzidos em pequenas frotas de canoas e lanchas, se estabeleceu entre todos os povoados do litoral próximo e a ilha. Presentes de toda ordem, gêneros e dinheiro, choviam na Gruta do Monge, levados de toda a parte por essas populações dadivosas e ingênuas. E quando um como vago culto pelo ermitão parecia querer aflorar nessas almas puras e simples, ele, que era já para muitos o "virtuoso" e o "santo", deixou o ilhote e sumiu-se...

Será uma lenda também esta história que ouvimos, tal qual aí fica, da boca de alguns velhos lavradores daqueles sítios? Queremos crer que sim. Mas deixemo-la, na sua ingenuidade religiosa e medieva, e findemos a nossa excursão, já um tanto demorada talvez para o espírito do leitor.

Todo o nosso trajeto de ponta a ponta, através da vigorosa floresta da ilha, foi bastante pitoresco e festejado pelo trinado dos sabiás, o chilrar dos tico-ticos e o meigo arrulho das pombas nos vassourais das baixadas. Não há mais pássaros em toda a ilha, além desses. O que abunda em suas matas é o gambá, que devora as plantações, e as horríveis e venenosíssimas jararacas do mato virgem chamadas.

Depois de mais ou menos cinco horas de passeio, tornávamos ao farol, que então foi todo percorrido por nós até ao maquinismo da lâmpada, suspenso à altura de 10 m acima da base da torre. Esta é toda de ferro, a forma troncônica, pintada de branco, e circulada externamente por uma galeria que fica na parte fechada por grossos vidros de cristal, onde está o aparelho (2a. dióptrica, com 25 milhas de alcance), de luz fixa e branca, com lampejos brancos e vermelhos de 2 em 2 minutos. A torre mede 14,70m na sua maior altura e o maquinismo da lâmpada acha-se na elevação total de 90m sobre o nível do mar.

As obras do farol começaram em 1881, sob a direção do ilustre almirante catarinense Marques Guimarães, então capitão-de-mar-e-guerra, a cujos esforços e bons serviços, relevados por sérios conhecimentos técnicos, se deve a inauguração desse melhoramento em 14 de março de 1883. Só poderá avaliar com justeza o que valem os sacrifícios feitos pelo digno oficial no desempenho de tal comissão, quem como nós conhecer a constituição geognóstica e hidrográfica dessa ilha alta e escarpada, onde o desembarque de pequenos volumes, mesmo em tempo de calma, e nas melhores condições, é coisa verdadeiramente penosa, quanto mais a condução para alto do cabeço de chapas de ferro e outros materiais, pesando às vezes toneladas, como as que serviram de base à torre do farol. E foram tais os obstáculos e perigos a vencer, que, de uma vez, uma dessas chapas de ferro, desprendendo-se da lingada, veio ferir o almirante Marques Guimarães, prostrando-o por alguns meses no leito. As obras, porém, chegaram a cabo, lá estão perfeitas, com o seu esplêndido farol, que funciona há já dezessete anos, atestando os méritos desse digno servidor do Estado.

A oés-noroeste da Ponta do Letreiro, na linha que corre neste rumo entre a mesma ponta e a dos Zimbos[50], no continente, encontram-se dois penedos altos e muito juntos, denominados Calhaus de São Pedro, os quais estão cercados por um cordão de pedras alagadas, quase unidas pela parte de sudoeste a um grupo de cachopos, onde o mar rebenta continuamente em novelos de espuma. Estes escolhos demoram cerca de três milhas do Arvoredo.

Daí para o norte, a pouco mais de uma légua, acha-se a ilhota da Galé, de uma milha de extensão: vestem-na aqui e ali vagas malhas de verdura raquítica, que mal encobrem as protuberâncias graníticas que a formam e que lhe dão um colorido geral de ferro oxidado, comum aos ilhotes dessa natureza. Pelo lado de leste escoltam-na dois penedos destacados, pousando a poucas braças um do outro, e pela extremidade do sul, dois outros ainda menores, com recifes submersos.


(Do Livro: A Ilha de Santa Catarina - 1900 https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/…/santacatarina-vi… - )

* Seleção do José Luiz Sardá

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