segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

MAR DE VERÃO

Foto: Marco Favero / Diário Catarinense

Recuerdos de un verano: o que faz de Floripa o destino dos argentinos nas férias
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Canasvieiras, Florianópolis, tarde de uma sexta-feira qualquer de janeiro. O chavão que diz que "turista vai para a praia todo dia, não importa o tempo" pode ser comprovado na prática. Chove que é uma beleza e na estreita faixa de areia às margens do mar não cabe mais ninguém. Vendedores de biquínis, picolé, calções, queijo coalho, cangas, espetinho, redes, sanduíche, óculos escuros, bebidas e bijouterias disputam espaço com veranistas que não estão nem aí para as previsões do tempo. Pela descrição, parece a visão do inferno. Para os argentinos, é o paraíso.

— É nossa sétima vez en Brasil, terceira acá. É maravilhoso, mesmo quando está lloviendo. Las personas son todas muy atenciosas — diz Ricardo Ruben Fruhald, 66 anos, lata de cerveja na mão, sentado sob o guarda-sol que hoje o protege do temporal.

O dono de lotérica que veio de carro de Quilmes (na região metropolitana de Buenos Aires) com a esposa, o filho, a nora e o neto se refestelar na região do norte da Ilha é um dos 1,5 milhão de hermanos esperados pela Santur durante esta temporada. Sim, é isso mesmo que você leu. Pela estimativa da companhia responsável por promover os produtos turísticos de Santa Catarina, a quantidade de pessoas do país vizinho que visitarão o Estado no verão equivale a quase um quarto da população catarinense.

O número corresponde também ao triplo dos habitantes da Capital e é 15 vezes superior à população de Balneário Camboriú, os dois destinos mais procurados. Claro que essa turma toda não vem no mesmo dia nem fica na mesma cidade. Ainda assim, é gente pra caramba — o que leva à desconfiança de que a projeção esteja exagerada e não passe de chute das autoridades competentes. O presidente da Santur, Valdir Walendowski, explica como foi feito o cálculo:

— A gente está em contato constante com operadoras de turismo, companhias aéreas e viações de ônibus de lá. Com base na expectativa de venda de pacotes e passagens que eles nos fornecem, mais a média do fluxo de carros que atravessam nossas fronteiras terrestres, estipulamos um número. Sem falar dos veículos que entram pelo Rio Grande do Sul, por exemplo, porque não temos como saber se eles virão para cá.

A despeito da precisão duvidosa, uma coisa é inegável: como tem argentinos, atraídos por ações da Santur (campanhas publicitárias, participação em feiras), indicação de amigos, câmbio favorável ou simplesmente pelas — que o digam os gaúchos — mais próximas praias lindas. Até março, eles transformam a costa catarinense em um desfile de veículos com placas pretas nas ruas, competições de tejo (espécie de bocha) na areia e camisetas de times como Boca Juniors, River Plate e San Lorenzo no peito.

São tantos que acontece até de, sem nada combinado, encontrarem-se por aqui. É o caso do analista de sistemas Mauricio Rodriguez, 49 anos, de Córdoba. Há 1,4 milhão de habitantes na cidade, a segunda maior da Argentina. Pois não é que ele estava andando pela praia e cruzou com o casal Tomasa, 38 anos, e Leonardo Pescatori, 40 anos, seus amigos? Naquela sexta-feira, as duas famílias curtiam juntas a parte da praia de Canasvieiras em frente ao trapiche; Rodriguez com a mulher e os quatro filhos, os Pescatori com seus dois herdeiros. Munidos de pipoca, sanduíches e bolachas e mate, o grupo só queria aproveitar os poucos dias que restam de férias.

— Tem muito mais construções, mais gente dormindo na rua e a praia ficou menor — atesta a administradora Tomasa, referindo-se às diferenças entre sua primeira vinda e hoje.
Javier Cuenca, 39 anos, conheceu Santa Catarina com os pais quando ainda era criançaFoto: Marco Favero / Diário Catarinense

No livro A História do Turismo em Florianópolis, Antônio Pereira Oliveira registra a presença de argentinos no Carnaval de 1954 em Florianópolis — mas mais "por acidente" do que fruto de alguma gestão. Uma semana antes da folia, já não havia vagas nos hotéis da cidade, que para não perder hóspedes recorriam a um jeitinho: "Eles vão enfiando camas nos quartos já ocupados", conforme publicava o jornal A Gazeta de 20 de fevereiro daquele ano. Para que a "encantadora Ilha fosse mais visitada pelos turistas", eram necessárias providências urgente do governo, pedia o jornalista J.B. dos Santos no mesmo jornal em outubro de 1955.

Naquele mês, apesar da falta de um plano oficial de desenvolvimento para o setor, o empresário Luiz Fiuza Lima, diretor da Transportes Aéreos Catarinenses (TAC), deu a largada para a maior campanha até então empreendida em Santa Catarina para divulgar o Estado nos locais atendidos pelos aviões da companhia. Ainda que operasse somente linhas domésticas, a promoção se estendeu até Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Bolívia e Chile, escreve Oliveira, fundador da primeira agência de turismo de Florianópolis, a Ilhatur, em 1967.

No final de 1973, os portenhos descobriram o litoral catarinense por meio dos voos fretados da companhia argentina Austral. Naquela temporada, a estimativa era de que cerca de 70 mil turistas visitariam o Estado. A imprensa alertava que os veranistas não encontrariam um único bar ou restaurante ao longo da orla além dos que já existiam no ano anteriores. O cenário não desanimava os forasteiros. Com dólares no bolso, a viagem para um refúgio com praias de águas quentes (se comparadas com as de lá), a apenas duas horas de voo, era mais do que convidativa.

Em 1974, o contingente de argentinos a vir para Santa Catarina foi tamanho que a mídia florianopolitana cunhou a expressão "invasão portenha". Eles não entendiam a dificuldade em pagar as compras com dólares, não aceitos em muitas lojas por um motivo prosaico: como não havia muitos bancos e casas de câmbio, o comerciante que recebia a moeda americana ficava sem capital de giro em cruzeiro. Não demorou para o próprio mercado achar uma solução: o câmbio paralelo em plena Rua Felipe Schmidt, no Centro da cidade. Um dólar valia 15 cruzeiros no oficial.

– Mas começaram a vir com tudo mesmo foi a partir de 1977 – crava Oliveira.

Dos 180 mil turistas que apareceram naquele anos, a maioria dos estrangeiros era argentina. Mas a situação cambial havia mudado e eles não vieram com tanta plata, consumindo abaixo do esperado. A cidade ainda sofria com problemas de infraestrutura. A falta de água e energia no verão fez os hóspedes dos hotéis — com as torneiras secas, no escuro, sem elevador nem ar condicionado — fossem embora. Apesar dos percalços, deixaram US$ 770 mil na cidade.

Eles reclamavam, mas não deixavam de aparecer. Em novembro de 1978, os hotéis do norte da Ilha já estavam com as reservas esgotadas para o verão que começaria em breve. Idem para casas e apartamentos de aluguel, embora os preços tivessem duplicado de uma temporada para outra. Em Canasvieiras, um mês de locação custava até US$ 2,5 mil. A movimentação fez com que os principais veículos da imprensa brasileira falassem de Florianópolis. Quando a Capital saiu no Jornal Nacional como um dos mais procurados destinos turísticos do Brasil, o trade imaginou que as coisas nunca mais seriam as mesmas.

Com razão: a publicidade espontânea fez com que a previsão de turistas em Florianópolis para o verão de 1979 ultrapassasse 300 mil pessoas. 

Não era necessário ser especialista urbano para imaginar o que o acréscimo dessa multidão causaria na rotina de um município com 170 mil habitantes, 35 hotéis e 60 restaurantes. Do Centro à "reta das três pontes" (estrada que liga o viaduto do CIC ao trevo do cemitério do Itacorubi, assim chamada porque havia três pontes de madeira, depois substituídas por duas de concreto) demorava uma hora e meia. Cerca de 50 mil visitantes ficaram ser ter onde dormir e foram embora. Nos balneários, água só não era mais rara do que rede de esgoto.

Em 1980, a maxidesvalorização da moeda nacional diante de uma inflação anual de 77% levou o dólar a 43 cruzeiros. Ruim para o trabalhador brasileiro, ótimo para o argentino, que mais uma vez arrumou as malas rumo à Ilha. Taxistas de Buenos Aires chegavam nos próprios veículos com toda a família para se hospedar no hotel Floph, o único cinco estrelas da cidade. Alguns comerciantes, com o olho gordo na carteira dos turistas, subiram em 100% o preço de seus produtos.

– Esses reajustes despropositados aumentavam o clima de repulsa dos nativos em relação aos argentinos – diz Oliveira.

Mas as verdinhas eram muito bem-vindas. E, para que seus donos se sentissem à vontade, o jornal Clarín começou a ser encontrado em algumas bancas da cidade, a rádio Diário da Manhã (futura CBN Diário) passou a transmitir propagandas em espanhol e as missas na capela de Ponta das Canas, no norte da Ilha, também eram ministradas no idioma. Os lojistas festejavam. O mês de janeiro, antes reservado ao balanço contábil, pois as vendas só melhoravam após o Carnaval, rivalizava com Natal e Ano Novo em movimento de vendas, graças aos 150 mil hermanos na cidade (de um total de 500 mil turistas), que compravam dólares em seu país a 35 cruzeiros e trocavam por 49 aqui.

– Uma operadora de Buenos Aires estava com uma demanda tão grande para cá que nos deu um micro-ônibus para atender seus clientes – lembra o operador de turismo.

Com a desvalorização do peso em 40%, os argentinos desapareceram das praias catarinenses em 1982. O sumiço evidenciou o quanto o turismo local dependia do humor da economia portenha e, pior, como não havia plano B. Para alívio dos cofres florianopolitanos, o verão seguinte os trouxe de volta, com uma mudança significativa de perfil. De acordo com Oliveira, eram aqueles de classe média alta que, impossibilitados de ir para o Caribe ou Europa, consolavam-se em Florianópolis com US$ 2 mil em média para gastar. Aí as reclamações mudaram de lado.

— Para os que vinham de avião, o aeroporto Hercílio Luz era pequeno demais; para os que vinham de carro, a gasolina brasileira era péssima. Para todos, a qualidade dos serviços oferecidos não correspondia aos altos valores cobrados.

Não seria em 1985 que os nativos teriam oportunidade de atender as reivindicações. A Casa Rosada inventou um imposto sobre os conterrâneos que viajassem ao Brasil durante o verão, afetando las vacaciones. Para compensar a queda, em 1986 o aluguel mensal de uma casa em Canasvieiras batia nos US$ 4,5 mil. A estiagem trazida pelo calor recorde de 40 graus provocava cortes diários de energia elétrica das 13h às 16h no norte da Ilha. Com problemas ou não, os argentinos deixaram US$ 230 milhões na cidade (segundo a imprensa), cifra que só seria superada em 1992.
Javier Frangiosa, 36 anos, veio com amigos de carro, via Uruguaiana (RS)Foto: Marco Favero / Diário Catarinense

Foi por essa época que o niño Javier Cuenca conheceu Balneário Camboriú com os pais e se apaixonou por Santa Catarina. Aos 39 anos, hoje o professor de San Martín (na província de Buenos Aires), se diverte na companhia das duas hijas, a esposa, a irmã, o cunhado e os dois sobrinhos na Cachoeira do Bom Jesus, que frequenta regularmente desde 1998. Na juventude, ele retornou para casa com a receita da caipiriña. Na maturidade, faz questão de não esquecer de um item especial na bagagem:

– Como minhas meninas são celíacas, sempre levo tapioca daqui. No Brasil, os alimentos avisam se tem glúten, na Argentina não respeitam essa lei – afirma o professor.

Cuenca entrou no país de carro por Santana do Livramento (RS), após encarar cinco horas de fila na aduana, tamanho era o tráfego de hermanos cruzando a fronteira. O motorista de transportadora Javier Frangiosa, 36 anos, o funcionário de uma fábrica de calçados Nicolas Cabello, 25 anos, e o motorista de ônibus Nicolas Jofre, 24 anos, também amargaram esse tempo para rodar em solo brasileiro, via Uruguaiana (RS). Ao redor de um cooler cheio de latas de cerveja, os muchachos de Lanús (também província de Buenos Aires) garantem que a espera valeu a pena.

— Para a gente é mais barato passar o verão aqui do que na Argentina. E à noche lo bitcho pega, mira mi namoradita — gaba-se Frangiosa, mostrando fotos da uma bela morena no celular.

Casados, solteiros, jovens, senhores: todos amam Santa Catarina. Um interesse que poderia ser ainda maior se, na avaliação de Walendowski, o Estado tivesse melhores condições. Até a pesquisa detalhada sobre o fluxo de turistas, fornecendo dados para incrementar as políticas do setor, foi interrompida em 2014 por carência de logística e pessoal. Segundo o presidente da Santur, as prefeituras não tiveram condições de contratar profissionais para a função nem a polícia tinha efetivo para orientar o trânsito, já que o levantamento é realizado na entrada e saída dos veículos dos municípios.

— Imagine quantos argentinos a mais viriam se a 282 e a 470 estivessem duplicadas. Ou seja, falta infraestrutura rodoviária, que é por onde eles mais vêm. Mesma situação para o aeroporto (Hercílio Luz, recentemente privatizado): há quanto tempo poderia estar pronto? E ainda tem toda a polêmica envolvendo licenciamentos ambientais, o que causa insegurança jurídica — elenca.

O pioneiro Oliveira, que atualmente trabalha focado em viagens para grupos menores, com "atendimento exclusivo", endossa as críticas. Para ele, o turismo catarinense precisa dar um salto. Na situação vigente, classifica, "é nota 7, então não tem como atrair turista nota 10".

— Falta tudo, estamos oferecendo somente praia.

Às vezes, isso basta. Ainda na Cachoeira do Bom Jesus, Florencia Fratino, 34 anos, e Ivana Gomez, 38, ambas professoras em Castelar (outra cidade da mesma província), contemplam o mar calmo sorvendo um mate e fazendo planos para se casar em breve. A pareja conta que já foi a Bahia e à praia de Pipa (RN), mas em Florianópolis os preços são menores e a beleza é, no mínimo, do mesmo nível.

— O único problema é que aqui tem muito argentino — ri a mais nova.

(Do http://dc.clicrbs.com.br/)

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