sábado, 23 de dezembro de 2017

FAZENDO FARINHA

Foto Rosane Lima/ND
Farinhada reúne vizinhos no último engenho tradicional movido a boi no Sul de Florianópolis
Moradores do Sertão do Peri e da Armação do Pântano do Sul mantêm tradição das farinhadas como meio de subsistência e resgate histórico

por Edson Rosa
Com o rosto maquiado pelo pó branco que encobre as engrenagens de madeira, o agricultor Sidnei Izidro Martins, 63 anos, precisa ser ágil para remexer a farinha torrada no fundo do forno de cobre. Ao mesmo tempo, faz o aboio e não deixa o novilho Baiato perder o ritmo no andame. Uma hora depois, está pronta a primeira fornada do dia.

Forneiro dos bons, Sid é o encarregado de dar o ponto à farinha produzida artesanalmente no único engenho movido a boi em funcionamento no Sul da Ilha. E um dos dois últimos de Florianópolis – o outro é mantido pela família Andrade, no Caminho dos Açores, em Santo Antônio de Lisboa, ao Norte.

“Alguns experimentam no paladar, mas eu sei quando está pronta pelo cheiro. Aprendi com meu pai, na infância. Cresci fazendo isso”, diz com simpatia e simplicidade características de quem sempre viveu no Sertão do Peri.

O resgate da tradição do engenho é como uma festa em família na pequena comunidade rural, escondida entre os morros que separam os distritos de Pântano do Sul e Ribeirão da Ilha. Lá em cima, de onde descem as principais nascentes da Lagoa do Peri, passado e presente se confundem.

Enquanto o forneiro toca o boi na roda, os demais se dividem nas tarefas secundárias da farinhada. Em meio a antigas cantorias, piadas e muitas gargalhadas, os homens cuidam da roça, enquanto mulheres e crianças raspam as raízes que mais tarde serão repassadas ao sevador ou ralador.

Outras, se encarregam da alimentação da turma. É o que faz Osvaldina Maria Barcelos, 60 anos, irmã de Sidnei e especialista em assar bijus - espécie de bolacha feita de massa temperada com sal, açúcar, cravo, canela, erva doce e fubá. Dona da casa, Maria Aparecida Barbosa, 55, a Cota, prepara o almoço farto bem temperado. Faz galinha caipira ensopada, tainha frita, arroz, feijão e, é claro, pirão de farinha.

Militar aposentado realiza sonho e preserva história

Criado na roça, o policial militar aposentado Jaime Antônio Duarte, 77, despista, mas não esconde o orgulho. Foi ele quem montou todas as peças que movem a engrenagem de madeira e fazem funcionar o único engenho de farinha tradicional do Sertão do Peri e do Sul da Ilha – os outros dois em substituíram o boi pela energia elétrica.

A réplica perfeita dos antigos engenhos coloniais, em extinção diante do acelerado crescimento urbano da Ilha, lhe consumiu dois anos de trabalho, concluído em 2006. Machado, facão e enxó foram ferramentas utilizadas para esculpir a madeira e montar as peças no interior casarão de tijolos maciços construído no terreno do amigo e também militar reformado Ailton Bonifácio Barbosa, 58.

Reconstituir um engenho colonial era um sonho antigo deles. “Fomos criados deste modo, e não queremos mudar o jeito de viver. É uma forma de reunir os amigos e preservar a história”, diz Jaime, enquanto demonstra habilidade no ralador. “No engenho são necessários três trabalhadores. Um na prensa, um no forno, e o melhor no sevador”, brinca.

Despojado, Jaime Duarte poderia ser dono da propriedade, mas está feliz ao ver o amigo Ailton tocar a farinhada. O engenho, segundo ele, está em boas mãos e cumpre à risca seu objetivo. “Queremos manter viva a história do lugar e servir aos vizinhos que cultivam a mandioca. Aqui se produz pouco, para consumo familiar. Mas é com qualidade, alegria e tradição”, completa.

Fornada resgata mutirão comunitário

Cada fornada demora pelo menos dois dias e, mais do que a tradição, preserva o espírito comunitário no Sertão. As roças são individuais, mas a produção é coletiva. “Um ajuda a fazer a farinha do outro, inclusive o dono do engenho”, explica Sid, antes de substituir Baiato por Moreno, novilho novo e igualmente de bom ritmo no andame.

Nesta semana, a primeira fornada é resultado da roça cultivada por Romário Darci Barcelos, 29, que conta com ajuda da mulher Vera Lucia da Silva, 41. Vizinhos, como Silvio Alípio Duarte, 36, e Vilma Felipe, mulher de Sidnei, participam do mutirão.

Depois da roça de Romário, será a vez da produção do forneiro Sidnei virar farinha. A última fornada do ano no engenho que ganhou o nome de Jaime Antonio Duarte, em homenagem ao construtor, será com mandioca arrancada das terras do próprio Ailton. “É uma alegria enorme ver isso funcionando”, diz. E, agradecido, dá um abraço apertado no amigo.

Para a dona Diquinha, 88, visitar o Sertão do Peri na manhã de ontem foi como uma volta ao passado. “Meus pais também tinham engenho, e matei a saudade”, disse, sentada em um dos banquinhos de madeira para ajudar na raspa da mandioca.

Tempo de farinhada Engenho colonial

Passo a passo

1-   Colheita e transporte do aipim ou mandioca em carro de boi até o engenho

2-   Homens e mulheres sentam-se junto ao monte para raspagem das raízes

3-    Próximo passo deixar as raízes de molho em água

4-   Hora de levar as raízes ao sevador, ou ralador

5-   A massa é colocada em tipitis (espécie de balaios), ou barricas de madeira, e levada à prensa

6-   Depois de prensada e seca, a massa é esfarelada em coxo de madeira, e peneirada

7-    Aos poucos, a massa é levada ao forno para ser torrada em 45 minutos, em média

Medidas

Alqueire – 22 quilos

Meio alqueire – 11 quilos

Uma quarta – 5,5 quilos

Meia quarta – 2,75 quilos

Salamim – 1,35 quilo

Vocabulário

Almanjarra - Madeira curva que liga o peão da roda a cangalha 


Andame - Caminho por onde o boi passa no trabalho do engenho em geral é forrado com capim 


Antrolhos – Venda colocada nos olhos do boi para que rode no andame

Biju – Espécie de bolacha de farinha, temperada com sal, açúcar, cravo e canela e fubá, e assada após a fornada


Canga – Suporte de madeira com dois rebaixos para juntar os bois no carro

Cangalha – Canga colocada na almanjarra para que o boi trabalhe no andame

Canzil – Cada um dos dois paus da canga, entre os quais o boi mete o pescoço 

Fuso – Parafuso de madeira que ira fazer pressão na prensa

Hélice – Pá do forno que tem duas pontas e um rodete embutido para mexer a farinha no forno 

Paiol – Local destinado a estocar a farinha depois de pronta

Peão de roda – é o mastro que segura a roda bolandeira

Prensa – Local onde se coloca os tipitis para retirar a água da massa da mandioca

Roda bolandeira – Roda grande do engenho

Rodete – Engrenagem de madeira em forma de dente com finalidade de tocar o engenho

Sevador – Peça ou pessoa encarregada de ralar a mandioca

Tipiti – Cesto feito de taquaras usado para colocar a massa da mandioca na prensa

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