domingo, 9 de novembro de 2014

QUATRO HOMENS NUMA JANGADA


A estadia do cineasta Orson Welles no Ceará, em 1942.

No início dos anos 40, quatro pescadores brasileiros se lançaram ao mar para uma viagem que entrou para a história. Tão arriscada foi ela, que até na imprensa americana ganhou espaço. Num artigo intitulado Four Men on a Raft (Quatro Homens numa Jangada), a revista Time reproduziu toda a odisséia de Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo), que a bordo de uma jangada singraram os 2.381 km que separam Fortaleza do Rio de Janeiro, sem bússola ou carta náutica, em mais de 61 dias de viagem pelo mar.Os jangadeiros queriam chamar a atenção do País e do governo para o estado de abandono em que viviam os 35 mil pescadores do Ceará.

Na primeira semana de dezembro de 1941, folheando a Time, Orson Welles tomou conhecimento da proeza e teve um insight: ali estava o segundo episódio brasileiro de It's All True, o filme pan-americano que o governo Roosevelt há pouco lhe encomendara como parte da Política de Boa Vizinhança.

Ele chegou primeiro no Rio de Janeiro, no carnaval de 1942, para filmar a festa e criar uma história sobre o carnaval. Quando terminou, ele veio à Fortaleza para manter os primeiros contatos com os jangadeiros. Por 500 mil réis semanais, os pescadores participariam de algumas cenas do episódio carnavalesco, ao lado de Grande Otelo, rodariam no aeroporto a despedida do Rio e reconstituiriam, numa praia da Barra da Tijuca, a triunfal chegada da jangada ‘São Pedro’ à Baía de Guanabara. Várias tomadas da chegada ao Rio chegaram a ser feitas, mas uma manobra infeliz da lancha que rebocava a jangada a teria virado na praia de São Conrado, jogando ao mar agitado os seus quatro tripulantes. Três se salvaram. O corpo do jangadeiro Jacaré desapareceu e nunca foi encontrado. Porem, o incidente não impediu o prosseguimento das filmagens.

Em Fortaleza, Welles revelou-se um homem radicalmente diferente do farrista e mulherengo que os cariocas conheceram. Não deixou de ir a festas, mas parou de beber e se dedicou nas seis semanas que passou no Nordeste, correndo contra o relógio e fazendo malabarismos com o orçamento. Sempre alegre, passou a viver com os pescadores, que o tratavam de "galegão legal" e admiravam o seu desprendimento de confortos materiais e sofisticações culinárias.

Em um episodio marcante, o ator e diretor de Hollywood certo dia saiu do hotel usando uma espalhafatosa camisa multicolorida, por fora das calças, e exibindo um penteado revolto. Dirigiu-se para o Cine Diogo, que naquela época exigia o uso de paletó para ingresso em suas dependências. Orson Welles estava esportiva e desalinhadamente trajado. Foi o bastante para ter sua entrada impedida no cinema. Um dos mais aplaudidos atores de Hollywood passou pelo vexame de não poder conhecer o cinema em cuja tela tantas vezes despontou como astro. Seu "Cidadão Kane" foi escolhido, reiteradas vezes, em diversos países, como o melhor filme já realizado. Nem por isso teve direito a entrar sem paletó no Cine Diogo.

O filme “It's All True” ficou inacabado por questão da censura, tanto do estúdio RKO quanto do Estado Novo, mas os registros existem ate hoje.

Fonte: Livro “Orson Welles no Ceará”, de Firmino Holanda.
Texto de Diego Vieira

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