domingo, 22 de junho de 2014

BARCOS PARADOS

Seu Zumar Felício, 64 anos, está impedido de trabalhar nesta safra
Foto Marcone Tavella / Agencia RBS

Regra que proíbe anilhas na pesca da tainha deixa 102 barcos parados em Santa Catarina e safra fica comprometida

Normativa de 2008 que regulamenta a captura do peixe não inclui a rede que é usada há décadas por pescadores artesanais

por Marcone Tavella

Com as mãos calejadas, um casaco de zíper enferrujado e um gorro vermelho, Zumar Felício conduz o barco da família pelos costões da Barra da Lagoa em um dia de sol. Estar no mar aos 64 anos é a única alegria do homem que aprendeu a pescar aos 12 e desde então insiste em capturar da água o sustento, apesar dos pesares:

— Pescar é sofrer, pois você trabalha sempre pros outros e não sobra muita coisa pra gente. Mas pescar também é alegria, pois me tira da terra, onde os pensamentos ruins não saem de mim — diz o senhor que há oito anos perdeu no mesmo dia dois dos cinco filhos e viveu, anos depois, o fim de um casamento de 44 anos. 

O rosto que dificilmente se abre em um sorriso, mesmo em meio a piadas dos companheiros de barco, se fecha instantaneamente em rugas amarguradas ao falar da proibição do uso da rede anilhada na pesca da tainha. 

— Nunca vi a gente ter de se humilhar para poder trabalhar. Não é pedir para ganhar mais, é para trabalhar — lamenta ele, que capturou 3,2 toneladas do pescado até a mais nova interrupção (algo em torno de R$ 25 mil). 

A liminar que liberava o uso da rede de cerco, concedida pela Justiça Federal no dia 23 de maio, foi cassada na última semana pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente. 

Segundo o presidente da Federação dos Pescadores de Santa Catarina, Ivo Silva, a medida atinge 102 embarcações da pesca artesanal, em 34 colônias de trabalhadores do Litoral de Santa Catarina. Restrição que freia uma safra que já superava a do ano passsado _ 1.200 toneladas em 2013 ante 1.260 este ano _ e se encaminhava para o auge, como é classificado pelos pescadores os últimos dias de junho. 

Anilhas foram a solução

Para entender a polêmica da rede anilhada é preciso voltar no tempo. Segundo o professor especialista em Tecnologia de Pesca da Univali, Roberto Wahrlich, as argolas de ferro foram introduzidas ao longo das últimas décadas na pesca artesanal de barco como forma de adaptação. Ele conta que antes, os barcos se aproximavam da costa com redes de emalhe com mais de 1 quilômetro de extensão, em linha reta, o que acabava impedindo que a tainha chegasse próximo da praia. A tática acabava resultando em conflitos com os pescadores que utilizam as redes de arrasto e puxam o peixe para a areia. 

Ao ter de afastar o barco da costa, a extremidade da rede, que antes tocava na areia, foi se distanciando do fundo do mar e abrindo um ponto de fuga cada vez maior para o peixe, que desviava por baixo. Para evitar mais desgaste com os pescadores de praia, os donos das embarcações começaram a experimentar e a imitar outra categoria de trabalhador do mar: o industrial. 

Embarcações da Barra da Lagoa vão e voltam sem permissão para pescar a tainha  
Foto Marcone Tavella / Agencia RBS)

A burocracia que fisgou o pescador

As anilhas surgiram, portanto, como a solução para o pescador artesanal de barco. Nesta tática, o barco se aproxima do cardume com uma rede que possui em suas extremidades as tais argolas de ferro. Quando as tainhas estão cercadas por um círculo de rede, as anilhas são puxadas e se fecham, formando um verdadeiro saco de peixe, que é erguido por um guincho mecânico ou manual _ algo parecido com o que é feito nos barcos industriais. 

O professor Wahrlich conta que em 2007, quando técnicos dos ministérios da Pesca e Meio Ambiente estiveram em Santa Catarina para levantar informações e regulamentar a captura da tainha, a existência da rede anilhada teria sido omitida pelas próprias colônias de pescadores. No ano seguinte, a Instrução Normativa 171 (de maio de 2008) acabou publicada sem incluir a rede anilhada e fisgou os trabalhadores de barco a motor, como o seu Zumar, que tem que armargar os custos da produção _ uma rede anilhada custa a partir de 30 a 40 mil reais. 

Ministérios não acompanham pesca da tainha

Apesar da Instrução Normativa de 2008, os pescadores puderam capturar a tainha em 2013 após um ato de desobediência do Ministério da Pesca. Pressionado pelos pescadores catarinenses, o órgão emitiu uma normativa temporária, sem o aval do Ministério do Meio Ambiente, que tem co-gestão sobre os assuntos pesqueiros. O Ministério Público Federal teve que intervir e invalidou a normativa, mas todo o peixe que tinha de ser pescado foi. 

Quando a safra começou este ano, em 15 de maio, tudo voltou ao rigor da lei. O presidente da Federação de Pescadores de Santa Catarina, Ivo Silva, foi então a Brasília, encaminhou dezenas de ofícios a dezenas de órgãos e sub-órgãos, mas só conseguiu uma alternativa temporária através da liminar do dia 23 de maio, do juiz Marcelo Krás Borges. O que não adiantou por muito tempo e tudo indica que dificilmente o Ministério do Meio Ambiente deve voltar atrás, na visão do professor Wahrlich. 

— É que a rede anilhada, apesar de ser usada há anos aqui, não existe para o Ministério da Pesca. Além do mais, não há qualquer acompanhamento sobre a pesca artesanal de Santa Catarina, nenhum dado estatístico oficial para avaliar o impacto que este equipamento causa ao meio ambiente. E no critério da precaução usado pelo Ministério do Meio Ambiente, quando não se tem conhecimento sobre uma coisa, não se permite fazer — afirma o especialista. 

E é assim que seu Zumar e outros pescadores vão para o mar. Sem poder fazer outra coisa, os trabalhadores se limitam a deixar rede de espera no costão para capturar anchova, corvina ou algumas tainhas que não conhece da burocracia. 

Rede de espera sendo colocada próximo ao costão da Barra da Lagoa 
Foto Marcone Tavella/Agencia RBS)

(Do HORA DE SANTA CATARINA - www.clicrbs.com.br)

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